Rodrigo de Lacerda Carelli*
Maysa Santos de Andrade**
Atenção, contém (muitos) spoilers!
No filme “O Valor de Um Homem” (França, 2015) (no original, “La loi du marché”), o diretor e roteirista francês Stéphane Brizé, constrói – combinando delicadeza e crueza na sua representação da realidade – a trajetória de um homem de 51 anos, desempregado, marido e pai, na luta para retornar ao mercado de trabalho. Este personagem, chamado Thierry, é interpretado com maestria por Vincent Lindon, cuja atuação lhe garantiu o prêmio de melhor ator no Festival de Cannes. O longa-metragem concordou também ao principal prêmio de Cannes, a Palma de Ouro.
Utilizaremos para a análise desta obra, portanto, o aparato teórico de Maurizio Lazzarato em seu texto “La fábrica del hombre endeudado. Ensayo sobre la condición neoliberal”, publicado em 2013. O autor busca entender a história da dívida e o poder a partir desta, concluindo que o ideal capitalista do sujeito centrado no trabalho por si mesmo falhou, e o neoliberalismo se sustenta hoje nos sujeitos endividados (2013, p. 110). Para a colocação desse paradigma foi necessária uma reprodução dessa economia da dívida pelo próprio Estado, cada vez mais dominado pelos ditames da financeirização (2013, p. 114). Nas empresas, predomina o interesse do acionista e, nos âmbitos das relações de empresa/empregado e Estado/cidadão, a individualização gera a contratualização dos direitos e dos conflitos (2013, p. 116-118).
Assistir a este premiado filme com as lentes que nos proporcionam as críticas do sociólogo e filósofo político italiano Maurizio Lazzarato ao neoliberalismo traz à tona o peso da eterna dívida com o capital (e com o Estado, como seu agente), débito carregado na forma de culpa ou obrigação por cada um de nós e presente praticamente desde que nascemos. Talvez por essa razão a obra seja tão tocante, principalmente nas cenas de silêncio, quando é impossível não se colocar no lugar de Thierry e perceber exatamente os conflitos que atormentam a consciência do personagem.
A questão da dívida está presente por toda a trama. Ela se inicia com o personagem principal expondo, em uma postura crítica ao discutir com um agente do programa de acesso ao emprego, uma das grandes questões a ser trabalhada ao longo do filme: Thierry busca a recolocação com urgência, já que não é possível quitar as suas contas apenas com o valor mensal de seu seguro desemprego, que inclusive está prestes a ser encerrado, mas o personagem percebe que os cursos de requalificação aos quais vem se submetendo não passa de um faz-de-conta e que está perdendo tempo e não conseguirá se recolocar na mesma área que sempre trabalhou. Aqui há a apresentação de uma dupla dívida: em relação ao Estado, pelo recebimento do seguro-desemprego e em relação à necessidade social própria do capitalismo de ter que trabalhar para receber salário e, com isso e somente por meio disso, sobreviver.
São também mostradas as dificuldades que o protagonista e sua esposa enfrentam para a obtenção de crédito, destinado aos estudos de seu filho, enquanto Thierry não está empregado, bem como os momentos humilhantes nas cobranças – só é cobrado aquele que deve – excessivas dos processos seletivos dos quais participa. Em seguida, o protagonista é levado a assumir posição na área de segurança em um supermercado – uma função totalmente diferente de seus trabalhos anteriores. Nesta posição, ele precisará lidar com decisões que impactam diretamente a vida de seus colegas de trabalho e de clientes, em troca da manutenção de sua condição de empregado.
Neste sentido, o que o filme mostra é que o cidadão não tem direitos garantidos pelo Estado, mas está sim em dívida com este, e o pagamento se dá em forma de atitudes de dedicação e submissão (LAZZARATO, 2013, p. 120-121). Esta conclusão se verifica, por exemplo, na primeira cena do longa, quando Thierry se justifica incessantemente para o servidor da agência de acesso ao emprego francesa sobre os motivos pelos quais ainda não está trabalhando e deve demonstrar que está se esforçando. É o trabalho sobre si mesmo exigido pelo neoliberalismo e imposto pela dívida, que se demonstra como eficiente instrumento de “workfare”. Aquele que não trabalha passa a ser um sujeito em dívida em relação ao Estado, devendo justificar-se constantemente por não encontrar o emprego. O emprego e o seguro-desemprego passam, assim, de direito a débito.
Esta transformação dos direitos do cidadão em dívida social e privada (LAZZARATO, 2013, p. 156-157) tem consequências de reflexão necessária para o presente debate. A lógica que o autor apresenta pode ser muito resumidamente expressa em uma simples frase: quem deve, precisa prestar contas. Em função disso vive o homem endividado: presta contas até mesmo de sua vida pessoal às instituições bancárias para obter crédito; explica-se ao Estado constantemente para manutenção do seu seguro desemprego; atua conforme esperam as instituições para, de alguma forma, pagar o que lhes deve; deve aceitar empregos mesmo que indesejáveis etc.
O filme mostra as preocupações do personagem pelos gastos futuros para a formação acadêmica de seu filho em função da diminuição da sua renda. Com isso, a família se vê obrigada a utilizar o que haviam guardado em poupança e, para manter alguma garantia na ausência de Thierry, substituem-na por um seguro em caso de morte. Como nos lembra Lazzarato (2013, p. 127-128), no sistema neoliberal os cortes de renda dos assalariados ou a diminuição dos valores arcados pela seguridade social não devem impactar o consumo, e sim substituí-las por dívidas por meio da concessão de crédito. Interessante notar que atualmente o nível de endividamento das famílias brasileiras é o maior da série histórica, atingindo 67,5% em julho de 2020, concentrados principalmente na baixa renda.
Na busca por alguma opção adicional de renda, a família retratada no filme tenta negociar a venda de seu trailer a um casal, percebe-se a tentativa daquele que está em posição privilegiada tentar aproveitar do homem endividado a vender o bem por um valor menor do que o de mercado, contando com a obrigação que este tem de quitar sua dívida.
À procura de um trabalho, o protagonista se vê em vários momentos submetido a pesadas críticas sobre a sua postura em entrevistas e seu currículo. Ao contratar um “coach”, figura excêntrica típica de nossos tempos, este organiza uma mesa em que outros trabalhadores analisam vídeo de entrevista de Thierry, que se vê criticado até mesmo o seu nível de amabilidade e a potência de sua voz – o trabalhador então é censurado em seu modo de ser, ele DEVE ser de outro modo, ele DEVE se adaptar ao que poderia ser almejado de um trabalhador desejável por possíveis empregadores. Ou seja, o desempregado é um devedor. O filme retrata, ainda, o sofrimento do filho de Thierry pelo rigor excessivo do colégio, apesar de sua dedicação. Como nos explica Lazzarato, nada escapa à avaliação pelo bloco de poder credor na economia da dívida: além do Estado, os empregadores, bancos, co-cidadãos e até mesmo escolas cobram os indivíduos (2013, p. 160-161).
Mais à frente na trama, Thierry é admitido em um emprego como segurança vigilante de um supermercado. Seu trabalho consiste em observar os clientes pelas câmeras para repreender furtos e vigiar a atuação dos colegas de trabalho nos caixas, garantindo que qualquer erro seja reportado. O personagem é logo informado que a intenção do supermercado com essa vigilância ostensiva é aumentar o lucro pelo corte de empregados: este é um dos aspectos da la loi du marché – a lei do mercado, nome original do filme.
Aliás, o título do filme em francês é muito rico: além de mostrar que as situações do filme são relativas à lei do mercado em sentido amplo, como lei do capitalismo, também traz o sentido de que o supermercado não é só o beneficiário da lei, mas a executa. De fato, no momento em que os seguranças tomam depoimento das pessoas suspeitas de furto, os seguranças assumem a função de policiais, promotores de justiça e até de juízes, impondo aos suspeitos o pagamento da mercadoria supostamente desviado, sob pena de aplicação da lei. O artigo da lei penal francesa referente ao crime de furto é incessantemente apontado pelos agentes de segurança do supermercado ao coagir os suspeitos a pagarem os produtos. Há nas cenas o exercício claro de poder de polícia e, em última instância, de poder de julgar de forma sumária alguém submetido à sua soberania. Aqui há a pintura de um claro quadro de credor (supermercado) cobrando a dívida do devedor (consumidor/empregado suspeito de furto), com utilização de violência e ameaça de pena por meio de seus prepostos (seguranças). Na prática, a dívida não paga se torna punível criminalmente, não havendo como não lembrar do Mercador de Veneza de Shakespeare e a cobrança da libra de carne pela dívida não paga.
Nas cenas que mostram seu trabalho como segurança de supermercado, percebe-se o desconforto de Thierry ao ter que denunciar um idoso, que a todo tempo responde “se eu tivesse o dinheiro, pagaria”, pelo furto de um alimento no valor de quinze euros. Em seguida, o espectador tem o mesmo incômodo ao assistir a dispensa de uma empregada apenas por ter se apropriado de alguns cupons de desconto: ela, em seguida, comete suicídio no próprio local de trabalho, o que indica a culpa pela dispensa, ou a vergonha da falta e ainda a preocupação financeira da personagem como parte dos possíveis fatores para o ocorrido.
Aqui percebemos o sentido do título brasileiro do filme – o valor de um homem –, que incita algumas reflexões: qual é o valor daquele homem preso por furtar uma carne? Qual o valor da empregada que tirou a própria vida em função da culpa ou vergonha originária da dívida? Qual o valor da liberdade? Qual o valor de um emprego? A liberdade vale menos que um pedaço de carne (de vaca, no caso)? O emprego vale menos que cupons de desconto?
Paralelamente a estes acontecimentos, o protagonista tem êxito na obtenção de crédito bancário para garantir os estudos do filho, mas somente após ter conseguido o novo emprego. Ou seja, seu valor para o sistema capitalista é reconhecido em sua empregabilidade, ele cumpriu sua dívida ao aceitar o emprego em uma função profissional que se mostra desprezível e contra os valores morais do protagonista. E, para que este se mantenha no emprego indesejável, o sistema lhe concede crédito para que este fique submisso à dívida, a ser paga no longo prazo de três anos. Assim, em tese, o trabalhador estaria preso ao emprego durante esse prazo, pela necessidade de quitar a dívida.
A dívida é uma expressão de poder específica, que funciona como uma máquina de captura sobre a sociedade em seu conjunto, como uma forma de prescrição ou gestão macroecômica (LAZZARATO, 2013, p. 35). A dívida é ao mesmo tempo uma promessa de pagá-la e a culpa de havê-la contraído. O poder da dívida é que a pessoa se mantém “livre”, mas seus atos e comportamentos devem estar sempre moldados pelos marcos definidos pela dívida contraída. A pessoa é livre desde que assuma o modo de vida do reembolso da dívida (LAZZARATO, 2013, p. 37). É como disse Deleuze (1992): o homem das sociedades de controle não é mais um homem confinado, é um homem endividado, livre, mas delimitado pela dívida.
Em seu texto, Lazzarato conclui que a revolução para superação do modelo apresentado, em função da transversalidade da dívida, não pode separar os campos político, econômico e social (2013, p. 187). A economia da dívida, para o autor, leva inevitavelmente a uma “política de totalização e individualização do controle autoritário do homem endividado”, o que inviabilizaria saídas reformistas do problema (p. 148).
Este caráter revolucionário pode ser sutilmente sentido no final do longa, quando o protagonista se recusa a fazer parte de mais uma triste dispensa na empresa, demonstrando toda a sua indignação e coragem na atitude de ir embora. Aqui também se descortina um duplo sentido no título brasileiro: o protagonista tem valores, e o trabalho é desprezível em relação ao seu julgamento moral a ponto que ele o abandona, com todas as consequências previsíveis desse ato. O filme constrói tão bem a indispensabilidade daquele trabalho para o personagem arcar com suas finanças que, quando ele simplesmente abandona o emprego devido aos seus limites morais, o espectador enxerga um ato heroico: a atitude de Thierry demonstra que o valor de um homem vai além do dinheiro necessário para satisfazer uma dívida.
* Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Procurador do Trabalho e Coordenador do Grupo de Pesquisas TRAB21.
** Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Membro de Grupo de Pesquisas TRAB21.
Referência
DELEUZE, Gilles. Post-Scriptum sobre as sociedades de controle. Conversações; 1972-1990. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992, p. 219-226.
LAZZARATO, Maurizio. La fábrica del hombre endeudado. Ensayo sobre la condición neoliberal. Buenos Aires: Amorrortu, 2013.