Plataformas digitais e vínculo empregatício? a cartografia dos indícios de autonomia, subordinação e dependência – artigo de José eduardo de resende chaves júnior, murilo carvalho sampaio oliveira e raimundo dias de oliveira neto

O debate sobre o vínculo empregatício daqueles que laboram nas plataformas digitais é bastante polêmico e controverso, porque envolve o conceito de subordinação jurídica e outros critérios que tentam dar sentido à expressão “sob dependência” constante no art. 3º da CLT.  

No campo pragmático das decisões judiciais, os elementos fáticos extraídos da dilação probatória têm sido usados ora para reconhecer autonomia, ora para reconhecer subordinação, o que demonstra certa perplexidade naquilo que a doutrina denomina de indícios, no sentido de sinais, rastros ou vestígios da ocorrência de autonomia, subordinação ou dependência. Ou seja, os mesmos “sintomas” têm gerado conclusões antagônicas, o que já demonstra a urgência da necessidade de problematizar esses indícios.

Esta pequena reflexão coletiva almeja sistematizar certos indícios conforme as teorias jurídicas correspondentes[1], a fim de auxiliar de forma crítica o debate sobre a existência ou não do vínculo empregatício. Cabe, entretanto, ressaltar que essa discussão sobre indícios não diz respeito apenas às plataformas digitais de trabalho, mas envolve todas aquelas situações fáticas que se encontram na zona cinzenta, a exemplo do debate sobre representantes comerciais, dos transportadores formalmente denominados de autônomos, dos salões de beleza e seus parceiros, dentre outros.

O primeiro momento desta problematização é a contextualização das mudanças nos modos de organização da atividade econômica, isto é, os modelos de empresas e suas consequentes dinâmicas de trabalho, especialmente pela acelerada transformação tecnológica.

Em geral, encontramos três grandes paradigmas de organização empresarial na quadra histórica do capitalismo: o fordismo e sua tônica de gestão baseada na hierarquia e salário por tempo fiscalizado; o toyotismo e sua rede de terceirizações, polivalências no conjunto funcional e maior frequência de pagamentos por metas e resultados; o uberismo com sua inovadora liberdade-flexibilidade na gestão do horário de trabalho, com jornada gerida por novos expedientes tecnológicos de controle e direção (algoritmo), além de um dirigismo econômico e acesso unilateral ao mercado.

Logo, não se pode conceber que o empregado é somente aquele trabalhador que se amolda à empresa fordista, pois o Direito do Trabalho é uma disciplina jurídica que antecede e sucede o modelo empresarial dominante no período de 1910 a 1970. Nesta perspectiva, é preciso ter como diretriz que a noção de empregado deve ser aproximar, num diálogo interdisciplinar, com o trabalhador  assalariado  no sentido de não se apropriar dos frutos do próprio trabalho, não ter acesso direto ao mercado, não participar da definição das regras do negócio (regras do algoritmo) e não ser proprietário da estrutura produtiva, sobretudo da pesada estrutura de rede.

Justamente a investigação jurídica sobre se o trabalhador é ou não empregado é manejada, nos processos trabalhistas, pela busca de sinais, vestígios, sintomas de um estado fático de subordinação. Naturalmente, a atribuição de relevância de um ou outro indício se liga aos conceitos definidos na legislação trabalhista. No caso em discussão, a moldura é a conjunção dos artigos 2º e 3º e parágrafo único do 6º, todos da CLT.

Da leitura atenta do conceito legal de empregador e conforme aportes da doutrina trabalhista, a exemplo de Maurício Delgado[2], já podemos visualizar no quadro abaixo, uma tipologia dos “poderes empregatícios” (primeira coluna) que, conforme diversos métodos (segunda coluna), dirige e assalaria seus trabalhadores. No juslaboralismo, esses mesmos fenômenos são traduzidos em diversos critérios jurídicos, como as múltiplas definições de “subordinação jurídica” – tanto no sentido subjetivo, como no objetivo –, as ideias antigas de dependência econômica e ajenidad ou mesmo a noção inovadora de “subordinação algorítmica”, que estão na “terceira coluna” do quadro abaixo, devidamente associadas às ideias anteriores.

Estas manifestações de poder empregatício se materializam no mundo fático em diversos sinais no cotidiano do trabalhador: havia horário fixo? Recebia ordens? Sofria punições? Laborava na atividade principal da empresa? Tinha metas a cumprir?  Os clientes são da empresa ou do trabalhador? Quem define o preço do trabalho? Há nota mínima para continuar trabalhando?  Trabalhava com exclusividade naquela empresa? Era monitorado e vigiado remotamente? Fornecia apenas força de trabalho? Essas frequentes questões podem ser ilustradas no seguinte quadro:

A intenção deste quadro é a fácil visualização dos aspectos fáticos que são sinais concretos de manifestação do poder patronal, que qualifica o empregador como o responsável, em termos mais amplos, pela organização, direção e apropriação dos resultados econômicos daquela atividade. A denominada zona gris, em que há imbricação de fatores de autonomia e dependência, na verdade, restringe-se a um diminuto rol de atividades, conforme quadro acima.  

No caso do labor intermediado por plataformas digitais, as condições são muito variadas, havendo plataformas que apenas conectam trabalhadores e clientes (“marketplace, que é também uma forma de mercado cativo da plataforma”) e outras que, além dessa função conectora, exercem verdadeira direção e controle sobre o trabalho alheio.

Especificamente nas plataformas tecnológicas intermediadoras de serviços de transporte de passageiros e entrega de mercadorias, suas empresas detentoras sustentam que o trabalho ali realizado por motoristas ou entregadores é autônomo. Em algumas, o cadastro de microempreendedores é condição de ingresso determinada pela própria plataforma.

Cabe indagar, entretanto, se o serviço do motorista/entregador se enquadra na definição legal de autônomo ou de empresário, se o tipo de contratação e a forma como executam a atividade evidenciam a independência e liberdade características do trabalho autônomo e que tipo de posição ocupam na estrutura da atividade-fim do empreendimento com relação às empresas de plataforma, referente à oferta do serviço de transporte de passageiro e/ou entrega de mercadorias.

Nesse caso, é importante levar  em conta que autonomia significa liberdade, vontade livre e manifesta, além de independência não apenas sobre o modo da realização do serviço, como também controlar a organização do modelo de negócio, que implica efetivo poder de negociação quanto ao preço do serviço e ao tempo para a sua realização. Além disso, autonomia empreendedora significa acesso direto, sem intermediação, ao mercado, aos clientes e até mesmo controle sobre o banco de dados de usuários-clientes, ou pelo menos livre acesso a esse banco.

É evidente que a investigação sobre esses fatos – que muitas vezes destoam das propagandas de autonomia e liberdade – transita por alguns dos indícios tratados acima e outros novos, como se vê nesta figura:

É importante ressaltar que o parágrafo único do art. 6° da CLT, introduzido pela Lei 12.551/2011, produziu duas grandes inovações na moldura normativa deste quadro de indícios. Primeiro, inscreveu na literalidade da CLT, pela primeira vez, o critério da “subordinação jurídica”, tendo em vista que havia, até então, um conceito legal aberto e indeterminado. Segundo, viabilizou uma noção de subordinação telemática como produto de manifesta direção (“comando, controle e supervisão”) e agregou ao debate o elemento do trabalho alheio, viabilizando a conexão com a doutrina espanhola da ajenidad.

Diante de tantos indícios e critérios jurídicos todos em conformidade com a moldura da lei, é perceptível que são muitas as possibilidades hermenêuticas para, no caso concreto, se identificar quem é o trabalhador que labora “sob dependência”, como consta na literalidade da CLT. Buscar apenas o indício da hierarquia disciplinar (“recebia ordens”) ou da jornada rígida, é dar exclusividade ao método da gestão fordista do trabalho, baseado na disciplina própria da produção linear, num sistema contemporâneo predominante reticular, maxime quando não há na lei ou na doutrina tal exigência.

Os quadros acima servem para ilustrar que há empregadores que exercem direção, controle e apropriação do trabalho alheio sem recorrer aos indícios clássicos da fábrica fordista.

Autores:

JOSÉ EDUARDO DE RESENDE CHAVES JÚNIOR – Professor Convidado do Programa de pós-graduação (Mestrado e Doutorado) da Faculdade de Direito da UFMG. Doutor em Direitos Fundamentais, Advogado, Desembargador aposentado do TRT-MG.

MURILO CARVALHO SAMPAIO OLIVEIRA – Professor Associado da UFBA – Universidade Federal da Bahia, Pós-doutorando na UFRJ, Doutor em Direito (UFPR) e Juiz do Trabalho Substituto no TRT-BA.

RAIMUNDO DIAS DE OLIVEIRA NETO – Mestrando no Curso de Filosofia da UEVA/CE e Juiz do Trabalho Substituto no TRT-CE

Referências

ASSIS, Anne; COSTA, Joelane; OLIVEIRA, Murilo. O Direito do Trabalho (des)conectado nas plataformas digitais. Revista Teoria Jurídica Contemporânea, v. 4, p. 246-266, 2019. Disponível em https://revistas.ufrj.br/index.php/rjur/article/download/24367/17785 

CHAVES JÚNIOR, José Eduardo de Resende. Chaves, J. E., Jr. (2019). Direito do trabalho 4.0: «controle» e «alienidade» como operadores conceituais para a identificação da relação de emprego no contexto dos aplicativos de trabalho. In Revista do Tribunal do Trabalho da 2ª   Região.   Disponível em https://www.academia.edu/40565485/Direito_do_trabalho_4.0_controle_e_alienidade_como_operadores_conceituais_para_a_identifica%C3%A7%C3%A3o_da_rela%C3%A7%C3%A3o_de_emprego_no_contexto_dos_aplicativos_de_trabalho acesso em 09 jan 2020

CHAVES JUNIOR, José; MENDES, Marcus; OLIVEIRA, Murilo. Subordinação, Dependência e Alienidade no Trânsito do Capitalismo Tecnológico. In: Ana Leme; Bruno Rodrigues; José Chaves Júnior. (Org.). Tecnologias Disruptivas e a Exploração do Trabalho Humano. 1ed.São Paulo: LTr, 2017, v. 1, p. 166-178.

DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho: obra revista e atualizada conforme a lei da reforma trabalhista e inovações normativas e jurisprudenciais posteriores.18. ed.— São Paulo: LTr, 2019.

OLIVEIRA, Murilo. Pandemia e uberização: o trabalhador lutando sozinho na guerra da sobrevivência. Disponível em https://trab21.blog/2020/06/03/pandemia-e-uberizacao-o-trabalhador-lutando-sozinho-na-guerra-da-sobrevivencia/

OLIVEIRA NETO, Raimundo Dias de. Elementos Fático-Jurídicos da Relação de Emprego no Trabalho dos Motoristas de Aplicativo. Revista do Tribunal Superior do Trabalho, São Paulo, v. 86, n. 1, jan./mar 2020, p. 152-167. ROCHA, Andrea Presas; OLIVEIRA, Murilo Carvalho Sampaio. A jurisdição sobre as plataformas digitais e seus ‘trabalhadores parceiros’. 2020. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-jul-16/rocha-oliveira-plataformas-digitais-parceiros. Acesso em: 18 jul. 202


[1] Sobre as concepções de subordinação e dependência, vale conferir o verbete “A subordinação jurídica no Direito do Trabalho” disponível em https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/374/edicao-1/a-subordinacao-juridica-no-direito-do-trabalho.

[2] DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do trabalho: obra revista e atualizada conforme a lei da reforma trabalhista e inovações normativas e jurisprudenciais posteriores.18. ed.— São Paulo: LTr, 2019.

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