* Por Ana Beatriz Bueno de Jesus (mestranda em Direito do Trabalho e Previdenciário, PPGD/UERJ; bolsista CAPES) e Giulia Valente de Lacerda Cunha (graduada em Direito na UFRJ). Integrantes do grupo de pesquisa “Trabalho no século XXI” (UFRJ).
O episódio “Autofac”, da série “Electric Dreams” – dirigida por Ronald D. Moore e Michael Dinner – é baseado em um conto de Philip K. Dick (1928-1982) com o mesmo título, escrito em 1955. Dick, autor de mais de cem contos, graduou-se em filosofia pela Universidade da Califórnia, na década de 1950 e enfrentou a recusa por parte de alguns editores em publicar suas obras. Esse comportamento dos editores fez com que o autor buscasse outros meios para publicá-los, como revistas populares.
No entanto, nos últimos anos, seus contos começaram a ganhar espaço nas universidades americanas e foram traduzidos em 25 línguas (O ESTADÃO, 2012). Seus trabalhos inspiraram filmes como “Blade Runner” (1982), “Minority Report” (2002), “Scanner Darkly” (2006) e “Total Recall” (2012).
A temática abordada em “Autofac” está diretamente relacionada com os novos fascismos, que surgem como um desdobramento do neoliberalismo – em especial, o “ciberfascismo”, retratados por Maurizio Lazaratto na obra “Fascismo ou revolução: o neoliberalismo em chave estratégica” (2019), marco teórico da presente resenha.
“Autofac” é fábrica automatizada e completamente desumanizada, gerida e operada por robôs, definida no episódio como capaz de tudo construir – é uma verdadeira “megamáquina” (LAZARATTO, 2019, p. 107). Ela foi criada para atender as necessidades básicas dos seres humanos, e, mais do que isso, produzir o que os humanos nem utilizam, com foco na circulação de produtos e fomento do caráter consumista da sociedade, gerando poluição. Percebe-se que a “Autofac” é uma metáfora do capitalismo. Entretanto, após a devastação para a guerra, a fábrica continuou empurrando sua produção sem que os seres humanos nem mesmo recebessem os produtos.
No episódio, retrata-se muito bem como a inteligência artificial, a cargo da máquina capitalista, é capaz de controlar, subjugar e “destruir” os seres humanos e a biodiversidade como um todo, o que se nota ao ver as condições precárias de subsistência das pessoas na cidade retratada na série, bem como a poluição, gerada pela “Autofac”, corroendo o planeta. Dessa forma, deve-se compreender que o fascismo pode ser definido como “uma forma de comportamento político marcada por uma preocupação obsessiva com a decadência e a humilhação da comunidade” (PAXTON, 2007, p. 358), o que é, facilmente, perceptível em “Autofac”.
O discurso do personagem Conrad retrata com clareza a situação de completa miséria em que se encontravam os habitantes da cidade retratada em “Autofac”: “(…) ela vai continuar comendo os nossos recursos, poluindo o nosso ar, envenenando a porcaria da nossa água, fazendo um monte de lixo plástico para um mundo que está morto e enterrado”.
É dentro desse contexto de destruição e precarização que Lazaratto (2019, p. 92) bem afirma que “o capital está disposto a sacrificar, sem qualquer escrúpulo, a saúde, a formação, a reprodução e a moradia de vastas camadas da população, ou seja, sacrificar a vida dos proletários, como sempre fez, como continua e sempre continuará a fazer”. Afinal, como exposto pelo autor, o capital é produção, ao mesmo tempo em que é destruição dos seres humanos e não humanos.
Dessa forma, após 20 anos do fim da guerra e de total submissão à fábrica “Autofac”, um grupo de habitantes da cidade retratada na série – tendo como líderes os personagens Conrad e Emily Zabrisck – começa a planejar como destruí-la, uma vez que temem o fim da espécie humana. Assim, iniciam uma verdadeira revolução, que tem sua gênese com a destruição de um drone da fábrica, passando pelo sequestro de um ciborgue chamado Alice – construído a partir dos dados de neuroimagem de Alice Fry, chefe de relações públicas da “Autofac,” terminando com a tentativa de destruição da fábrica a partir de sua matriz.
O controle da “Autofac” está relacionado com a vitória do capitalismo, que, como bem colocado por Lazaratto (2019), confunde-se com a paz, uma vez que houve a derrota da revolução, com o fim das guerras. Como preceituado pelo autor, com o fim da revolução e a “incapacidade das forças anticapitalistas de reorganizá-la, a democracia logicamente desapareceu” (p. 55). É o que se vê no medo constante dos indivíduos se imporem contra a “Autofac”, mostrando que o controle sobre as pessoas, em um mundo destruído se dá através dos denominados “afetos tristes”, quais sejam: “frustração, ódio, inveja, angústia, medo”, preceituados por Espinoza e citados por Lazaratto (2019, p. 104).
Essa ideia de “paz” com o fim da guerra, colocado no episódio, não condiz com a realidade, na medida em que a guerra não desapareceu, mas assumiu uma nova forma, em uma verdadeira “guerra contra a população”, tendo a tecnologia como aliada, sobretudo por meio do uso e controle dos dados para antecipar comportamentos. Percebe-se que enquanto no fascismo histórico havia uma guerra total, nos novos fascismos há diversas modalidades de guerras dentro das populações (LAZARATTO, 2019, p. 71).
O fascismo é, assim, marcado pela violência, tendo como uma de suas características “a beleza da violência e a eficácia da vontade” (PAXTON, 2007, p. 360). Quando os personagens da série iniciam uma revolução, indo até a fábrica para destruí-la, há o uso da força pela “Autofac”, para manter sua dominação. Essa dominação se justifica pelo fato da “Autofac” constituir o papel tríplice de máquina social, técnica e de guerra, sendo essa última percebida por Lazaratto como aquela que implica dominantes e dominados, relações entre forças, a partir das quais se produzem normas, hábitos e leis, mas também o fazer morrer e a violência (LAZARATTO,2019, p.109).
O medo, mediante o uso da força, é justamente um objetivo dos novos fascismos, na medida em que tentam reativar a relação entre a violência e a instituição, buscando uma indistinção entre o Estado de exceção e o Estado de Direito (LAZARATTO, 2019, p. 10). O poder, assim, não está simplesmente em ações, mas também na possibilidade de sua imposição pela força e pela violência. (LAZARATTO, 2019, p. 75).
Ao chegar na matriz da fábrica, Emily se depara com diversos ciborgues – definidos por Lazaratto (2019, p. 126) como inimigos mecanizados e sem emoções, capazes de movimentos previsíveis – em cápsulas, que são clones delas e de seus amigos, gerados por seus dados. Ao se deparar com Conrad morto, vê que ele já era um ciborgue, assim como ela. Os seres humanos foram substituídos por máquinas. Há aqui a plenitude do objetivo neoliberal de esvaziar o sujeito (HAN, 2018, p. 107). Esse esvaziamento com a “coisificação” dos indivíduos é claro na seguinte fala do ciborgue Alice para Emily: “Tudo é substituível. Você não é a única”.
É interessante destacar que no trabalho realizado por meio de plataformas digitais há essa ideia de os seres humanos serem descartáveis, uma vez que os trabalhadores dessas plataformas tendem a ser desligados e substituídos a qualquer momento. Essa ideia de fungibilidade dos trabalhadores, com valores e metas ditados pelo algoritmo da plataforma é a própria “Autofac”. Eles também são dominados por afetos “tristes” (LAZARATTO 2019, p. 104), na medida em que aceitam condições precárias de trabalho, para manter suas subsistências e têm medo de se imporem contra a plataforma, através de greves e/ou manifestações, por exemplo, por temerem ser desligados.
Aqui está o fascismo cibernético preceituado por Lazaratto, que se apropria da tecnologia, das informações e dos dados como uma forma de poder sobre os indivíduos, prevendo suas ações e buscando controlá-las.
As lembranças, sentimentos e sensações dos supostos humanos retratados na série não passam de dados. Eles são máquinas controladas. Esse controle é próprio do neoliberalismo, que busca manter o sistema dominante com o uso da programação e do controle psicológico (HAN, 2018, p. 107).
O “dataísmo” é o segundo iluminismo, que vivenciamos atualmente, conforme Han (2018). Nele, o sujeito está digitalizado, como se vê em Autofac, e o conhecimento é movido pelos dados. O poder do capitalismo está, justamente, na “virtualidade do comportamento” (LAZARATTO, 2019, p. 74). Dessa forma, Han (2018, p. 80) bem coloca que “é necessário um terceiro iluminismo, que nos ilumine mostrando que o iluminismo digital se converte em servidão”.
O desfecho do episódio é surpreendente ao revelar que Emily já tinha consciência de sua condição de ciborgue e havia colocado, intencionalmente, um vírus em sua programação. A consciência de Emily aliada à sua capacidade de amar como os seres humanos demonstra a presença de “afetos felizes”, que culminam no rompimento com o neoliberalismo, pela revolução. Como aponta Lazaratto (2019, p. 116) “os dados só podem governar os comportamentos daqueles que aceitam ‘as coisas como são’. Não podem nem prever os comportamentos das subjetividades em ruptura nem, muito menos, governá-las”.
Apesar de ser programada para acreditar que é um ser humano, Emily percebeu sua condição não humana ao sonhar diversas vezes que estava vivendo fim do mundo. Assim, o episódio termina com a revelação de que Emily foi criada a partir dos dados da criadora da “Autofac” e com a consequente destruição da fábrica.
O que poderia ser a vitória dos seres humanos sobre a dominação do neofascismo, na série é, na realidade, uma falsa paz, uma vez que o capitalismo havia vencido a guerra e dominado a tal ponto que ele não tinha mais inimigos para vencer, mas, tão somente, “vencidos a governar”. (LAZARATTO, 2019, p.70).
O capital só encontra um inimigo “quando a submissão às leis da produção do lucro e da governamentalidade se transforma em revolução” (LAZARATTO, 2019, p. 68/69). Essa submissão, como já destacado, pode ser percebida, nos dias atuais, nos trabalhadores que utilizam as plataformas digitais como ambiente de trabalho, em uma suposta autonomia em relação à tecnologia, que os ordena e escraviza.
Aqui está a importância da revolução tão defendida por Lazaratto (2019) como uma forma de se combater os novos fascismos, na medida em que a universalidade dos direitos só é alcançada por meio dela. Para o autor “foram as revoluções que impuseram a igualdade e conquistaram os direitos políticos e sociais para todos” (LAZARATTO, 2019, p. 54).
Dessa forma, tanto o episódio “Autofac”, quanto a leitura de Lazzarato, resultam na reflexão do caráter (in)substituível do ser humano em relação a máquina e da necessidade constante de resistência aos fascismos.
Referências Bibliográficas
HAN, Byung-Chull. Psicopolítica. O neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Belo Horizonte: Âyiné, 2018.
LAZARATTO, Maurizio. Fascismo ou revolução? O neoliberalismo em chave estratégica. 1. ed. São Paulo: N-1 Edições, 2019.
O ESTADÃO. Obras do Americano Philip Dick começam a ser reeditadas no Brasil. São Paulo. 17 de ago 2012. Disponível em <https://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,obras-do-americano-philip-k-dick-comecam-a-ser-reeditadas-no-brasil,918097>. Acesso em 20 de jun 2020.
PAXTON, Roberto Owen. A anatomia do fascismo. São Paulo: Paz e Terra, 2007.