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RESENHA – “GIG – A UBERIZAÇÃO DO TRABALHO” (2019) – UMA ANÁLISE SOB A PSICOPOLÍTICA SEGUNDO BYUNG-CHUL HAN – Catia Cristina de Araujo Quarterolli Bastos e José Alexsandro da Silva.

O filme “GIG – A Uberização do Trabalho” (2019), dirigido por Carlos Juliano Barros, Caue Angeli e Maurício Monteiro Filho, apresenta aos cinéfilos o mundo dos trabalhadores por plataforma, em um amplo leque de atividades e situações, permitindo um panorama do chamado “trabalho digital” em sua crueza e, podemos dizer, crueldade.


A Repórter Brasil, responsável pela produção, é referência nacional no combate ao trabalho escravo e na promoção do trabalho decente. Assim, esse elenco de diretores (alguns dos quais também participaram da fundação da ONG) traz como diferencial a experiência com registros de labor degradante e extenuante que em nada lembram o conceito de trabalho decente proposto pela OIT e a excelente fotografia encontrada em outros documentários com a assinatura da entidade, como “Carne Osso – O Trabalho em Frigoríficos”.


“GIG – A Uberização do Trabalho” demarca muito bem o fenômeno mundial e crescente do trabalho que surge e se expande em épocas e regiões onde há grande volume de trabalhadores sem oportunidades de emprego, que aceitam receber, por tarefas específicas e mal pagas e sem exigência de especialização, valores cada vez menores. Uma distorção a partir da demanda sinalizada e bipada por aplicativos e plataformas digitais, que se autodeclaram mediadores entre clientes e prestadores de uma gama cada vez mais ampla de serviços, atraídos pela necessidade real de uma fonte de renda e pela falácia neoliberal do “empreendedor de si mesmo”. Assim, o filme apresenta a diversidade que o fenômeno possui, no que diz respeito aos tipos de serviços prestados, entre os quais, estão presentes os serviços domésticos, , motoristas, professores, locutores e, até mesmo, goleiro de “peladas”.


A presente resenha aborda a economia do “bico” e as transformações e fragmentações que ela promove nas relações de trabalho, sob a perspectiva da teoria de Byung-Chul Han, em sua obra Psicopolítica – O neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Se o ponto de partida da chamada Gig Economy era a ideia de compartilhamento, a lógica atual do sistema de “bicos” é individualizada e individualista ao extremo, depositando no trabalhador por aplicativo a responsabilidade por seu fracassso ou sucesso.


Tanto no documentário quanto no livro Psicopolítica – O neoliberalismo e as novas técnicas de poder, de Han, um primeiro ponto a se destacar é a exploração da noção de liberdade. Uma referência à liberdade que, no primeiro, se revela nos anúncios espalhados pela cidade, no sentido de ganhar dinheiro fazendo seu próprio horário e na quantia que a pessoa escolher, ao passo que, no livro, o autor introduz a ideia de que existe uma exploração da liberdade no qual, aparentemente, o sujeito vê-se livre de coerções e restrições externas, como horários e lugares fixados para o trabalho no antigo sistema capitalista de produção, porém mostra-se uma versão pior de seu antigo algoz, sujeitando-se a coações internas em forma de automonitoramento constante em busca de desempenho e formação continuada.


As empresas argumentam que sua função é apenas conectar os trabalhadores independentes com os consumidores finais, não se tratando, portanto, de uma relação entre empregadores e empregados. Dessa forma, os trabalhadores que atuam nesses serviços seriam clientes das plataformas, contratando seus serviços, correspondendo as taxas cobradas à contraprestação pelo serviço das plataformas.
O discurso do “seja seu próprio chefe” diz muito sobre a capacidade que o neoliberalismo tem de explorar a liberdade do indivíduo e o transformar em um empreendedor de si, e com isso, potencializa a extração da força de trabalho e aumenta o lucro. Nas palavras de Han, “vivemos em um momento histórico particular, no qual a própria liberdade provoca coerções. A liberdade de poder (Können) produz até mais coações do que o dever (Sollen) disciplinar, que expressa regras e interditos. O dever tem um limite; o poder não” (HAN, 2018, p. 9/10).
Nesse contexto, podemos falar do que Han denominou de “psicopolítica” que consiste, sinteticamente, na governança da sociedade mediante a exploração da psique humana. Enquanto a sociedade disciplinar teorizada por Foucault apresenta-se como forma de governança dos corpos (biopolítica), usando recursos normativos de coerção, a sociedade neoliberal do desempenho, conforme Han, utiliza-se de técnicas de poder que funcionam como estímulos positivos que atingem a mente humana e conduz a sociedade aos objetivos do capital (HAN, 2018, p. 34/36).


A definição de modo unilateral das regras do sistema por parte das empresas que administram a plataforma, como o preço do serviço, a percentagem que será descontada e destinada para o aplicativo e a forma de execução do trabalho, demonstra o intenso controle sobre a atividade.


O discurso empresarial, nesse contexto, visa a isenção de suas responsabilidades legais, isto é, trata-se de uma defesa retórica para escapar da regulação estatal, especialmente, no que concerne aos direitos trabalhistas. Nesse modelo, o trabalhador não possui qualquer proteção de direitos trabalhistas, participando, portanto, de uma relação de trabalho precária.


Nesse tipo de relação precária, o trabalhador está exposto a diversos riscos, sem que haja qualquer resguardo por parte das empresas proprietárias das plataformas. Para mencionar exemplos, temos os casos apresentados no documentário como assaltos de motoristas da Uber, em alguns casos seguidos de morte, além de acidentes de trânsito sofridos por motoboys. A necessidade do trabalhador faz com que se torne sujeito a condições cada vez mais precárias, uma vez que o medo de não ter trabalho leva-o a aceitar qualquer trabalho.


Além disso, o fenômeno da uberização expandiu-se para diversos ramos de serviços, não só aqueles já muito precarizados. Como bem descrito por um dos trabalhadores entrevistados no documentário, “a grande democratização desses últimos períodos está sendo a precarização das condições de trabalho, a precarização das condições de vida…”.


E em relação à renda obtida por meio das plataformas digitais, a promessa da liberdade pretendida com a figura do empreendedor de si mesmo começa a arrefecer, uma vez que não são claras as regras estabelecidas para serem fixadas as tarifas pelos serviços prestados, sendo as empresas por detrás dos aplicativos as proprietárias dos algoritmos que definem e coletam essas informações. Afinal, tão pouco poder de decisão é atribuído a esses ditos empreendedores, que só sabem o destino dos clientes a eles reservados após aceitarem a corrida. Tão pouco poder decisório que, inclusive, são banidos das plataformas caso recusem um determinado número de corridas ou entregas.


São frequentes os relatos de trabalhadores entrevistados para o filme no sentido de que, ao longo do tempo, aumentou o trabalho e diminuíram os ganhos financeiros. A título exemplificativo, no documentário, temos um caso de um motoboy que relatou: “…setembro de 2015, eu fiz quarenta e quatro serviços, fiz R$ 5.361, 64, vou pegar setembro de… aqui é 2015 né? Vou pegar setembro de 2016, um ano depois, [no vídeo o trabalhador mostra o seu celular com o aplicativo da empresa aberto e mostrando o valor de R$ 2.283, 45 para 93 entregas], o dobro de entrega e menos da metade, então tem alguma coisa de errado. É o quê? É um bico, eles tão fazendo da categoria um bico”. Dessa forma, como podemos falar em autonomia e liberdade se as regras determinadas unilateralmente pelas empresas determinam seus rendimentos?


Da expectativa de ser o empreendedor de si mesmo restou apenas o fator “risco”. Desse, as empresas desenvolvedoras dos aplicativos usados fazem questão de se desvencilhar. A gasolina, as rodas, os aluguéis, os acidentes e o pagamento (ou não) de seguros, todos muito bem alocados sob a responsabilidade do trabalhador.


Na visão de Ricardo Abramovay, entrevistado no documentário, o que caracteriza o empresário é a capacidade de trazer novidade por seu talento em sua área de atuação e disposição para correr riscos. Portanto, a mera exposição a riscos não é suficiente para caracterizar o empreendedorismo.


Segundo Han, o poder disciplinar “é um poder normativo que submete o sujeito a um conjunto de regras, obrigações e proibições, eliminando desvios e anomalias”, que tem a biopolítica como técnica de governança para esse tipo de sociedade, características do capitalismo. Para o autor, o neoliberalismo adota a psicopolítica, técnica de governança que tem a psiquê como força produtiva, de modos imateriais e incorpóreos, operacionalizados e otimizados por processos psíquicos e mentais, garantindo que o indivíduo aja sobre si mesmo, reproduzindo o contexto e dominação como sendo de liberdade, visando a melhora da eficiência e desempenho.


Esses mecanismos são direcionados para as emoções, que são recursos para alcançar mais produtividade e desempenho, de tal modo que o empreendedor de si mesmo enfrenta o esgotamento mental, representado por quadros como depressão e burnout. No contexto apresentado até aqui, mais um risco a ser assumido pelo empreendedor de si mesmo, visto que, positivando-se a pessoa em coisa: quantificável, mensurável e controlável (para usar os termos de Han), corre o risco de, ainda, ser irrelevante, que o documentário traz como uma ameaça maior do que a de ser explorado.


A exploração do neoliberalismo passa por três formas de expressão da liberdade, que são as emoções, o jogo e a comunicação. O jogo, ou a gamificação do trabalho, segundo Han, está representado pela sensação de êxito e recompensas imediatas que, no documentário, é apresentado, por exemplo, na narrativa de um trabalhador que atua como goleiro, arregimentado por meio de aplicativos, que demonstra muito entusiasmo por premiações como chuteiras, camisa ao atingir a marca de 100 jogos pelo aplicativo (que teria a máxima vantagem de ter a opção de variar a indumentária!), além de mensagens que oferecem bônus caso as corridas sejam feitas em determinados horários ou pelo quantitativo de corridas em um mesmo dia.


Da maneira que essas recompensas são postas, novamente o risco fica por conta dos trabalhadores: para atingir as metas estabelecidas para obtenção do bônus, o motorista corre mais, infringe mais leis (como avançar sinais), indo atrás de seu sustento, ao mesmo tempo em que tem que superar a concorrência de outros trabalhadores cadastrados no aplicativo.


As empresas alegam que seus prestadores de serviços são autônomos e, como resultado disso, não podem determinar a jornada de trabalho ou o local de trabalho, visto que tal atitude poderia configurar uma relação de emprego. Assim, com o intuito de que os trabalhadores prestem os serviços conforme seus objetivos empresariais, as empresas utilizam mecanismos baseados em incentivos psicológicos e técnicas descobertas pela ciência. Com isso, alcançam o objetivo de influenciar o local e o tempo do serviço [1].


Essas estratégias estão no campo do que é chamado de gamificação do trabalho que, apesar de não ser uma novidade, ganha maior relevância no que se refere às plataformas digitais que, através de suas interfaces (aplicativos), criam estruturas que se assemelham aos jogos eletrônicos, porém com aplicação voltada ao trabalho.


Desse modo, o fornecimento de bônus e premiações funcionam como incentivos que intensificam e estendem a jornada, uma vez que o trabalhador acaba sendo conduzido a almejar o cumprimento de determinadas metas para que tenha melhores resultados financeiros. Assim, aqueles que prestam serviços adentram o “jogo” e contribuem para a elevação da produtividade da empresa.


A gamificação funciona como técnica neoliberal que promove o aumento da produtividade, sem se valer da repressão direta por meio de sanções por descumprimento de metas e, sim, com incentivos positivos que cumprem a mesma finalidade, criando a aparência de liberdade. Recompensas rápidas geram motivação, pois trazem uma sensação de realização e, isso aplicado ao trabalho, significa mais trabalho.


Outro efeito desse processo é o sentimento de competitividade e individualismo em relação aos demais trabalhadores, vez que estão em concorrência direta com eles, o que vai no sentido contrário à ideia de colaboração que a economia do compartilhamento diz promover.


Diante disso, a união necessária para a luta por direitos e melhores condições de trabalho resta prejudicada, uma vez que os trabalhadores se fragmentam e acabam não se reconhecendo como um grupo que podem se fortalecer ao atuar em conjunto.


As plataformas digitais possuem amplo acúmulo de dados que lhes permitem ter ampla visão do negócio e do comportamento dos prestadores de serviço. Um dos recursos frequentemente utilizados, e que possui papel de destaque nessas estruturas, são os sistemas de avaliação.


Esses sistemas são formas de avaliar a prestação de serviço por parte do cliente final. A avaliação do trabalhador serve para demonstrar, em teoria, a qualidade do trabalho fornecido, assim como também, para a atribuição de sanções em caso de resultados insatisfatórios. A própria colocação do trabalhador na classificação geral da plataforma repercute na quantidade de serviços que irá receber e eventuais benefícios. Dessa maneira, os consumidores finais funcionam como uma espécie de massa de pequenos gerentes que fiscalizam a execução do trabalho.


A consciência de que estão sendo avaliados possui o condão de influenciar diretamente na forma de prestação, inclusive se submetendo a condições ou riscos aos quais não deveriam, mas que aceitam por receio de serem mal avaliados e correrem o risco de, até mesmo, serem desligados da plataforma, perdendo sua fonte de renda. Como exemplo dessa situação, é emblemático o depoimento de uma das trabalhadoras entrevistadas no filme que trabalha para uma empresa que oferece serviços de diarista: “Só sobe se for de escada, não limpa o vidro por fora, não é para lavar quintal porque quintal é arriscado. Se pedir para limpar o quintal, não lava…, mas como? Mas é uma coisa assim, se você não lavar, o cliente dá uma nota ruim e depois você não tem serviço, tua nota cai lá embaixo, você não tem serviço. Aí você arrisca, se cair… vai lá e lava”.


Outro problema desses sistemas é a falta de transparência. Os relatos de bloqueios de trabalhadores sem uma justificativa detalhada das razões que levaram a esse resultado drástico (muitas vezes a única fonte de renda) evidencia um controle hierárquico sem segurança alguma para a parte mais vulnerável da relação. Isso gera uma situação de desconfiança em relação à coerência da plataforma, que sustenta que o profissional é autônomo, mas toma atitudes suspeitas diante do exercício da liberdade do mesmo, como o caso do motoboy entrevistado no filme que faz o seguinte relato: “…e aí eu estava numa manifestação e fui bloqueado por conta de ter falado e esbravejado de que os valores não estão corretos. Por conta disso eu fui bloqueado e estou até passando dificuldade por conta desse bloqueio. Pedem uma série de documentos para você entrar na plataforma, né? Mas quando vai te descredenciar, você vira somente um número lá que eles apertam um botão e te tiram e você fica a ver navios”.


A grande vantagem e valor econômico dessas empresas está em sua capacidade de obtenção de dados, sejam dos trabalhadores ou dos clientes finais, identificando padrões de consumo e de preferências nos serviços. A quantidade de informações armazenadas, além disso, é estratégica para a tentativa de construção de sistemas automatizados de inteligência artificial que visam a substituição da mão de obra humana, entre outros objetivos não declarados, sob a promessa de que sirvam de base para o desenvolvimento de “carros automáticos do futuro”, por exemplo.


Entretanto, é necessário que esses serviços sejam regulados. Não podemos simplesmente comprar a ideia de que o barato hoje não vai custar caro em um futuro próximo. Seja do ponto de vista econômico, seja no próprio trato do serviço, pois, enquanto consumidores, estamos sendo atendidos por trabalhadores precarizados. Isso significa, por exemplo, que ao pegar uma viagem em um desses aplicativos de transporte, podemos ter, do outro lado, um motorista que está em uma longa jornada de trabalho, cansado e ao volante, aumentando o risco para nossas vidas e a deles.


Importante termos em mente, portanto, que a liberdade só existe enquanto coletividade e que o individualismo só serve para oprimir. Estarmos cientes dessa exploração psíquica e sermos sujeitos (não no sentido de submissão, como proposto por Han) das escolhas feitas, permite-nos tentar alguma forma de evitar o esgotamento e ansiedade tão característicos desse processo de culpabilização que a pressão por produtividade e desempenho nos impõe.


É a lógica do “bico” a serviço de quem tira vantagem da oferta de mão-de-obra barata e precarizada. Diante desse cenário, torna-se urgente fazermo-nos a pergunta inicial do filme: “Qual o risco que nós queremos assumir para que nossas necessidades sejam atingidas de uma forma mais barata?”

HAN, Byung-Chul. Psicopolítica. O neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Belo Horizonte: Ayiné, 2018.
[1] SCHEIBER, Noam. How Uber Uses Psychological Tricks to Push Its Drivers’ Buttons. The New York Times. New York, 02 de abril de 2017. Technology. Disponível em:https://www.nytimes.com/interactive/2017/04/02/technology/uber-drivers-psychological-tricks.html. Acesso em 10/05/2020.

O documentário está disponível na íntegra no site da Globo News, no Net Now e no Vivo Play

RESENHA – Você não estava aqui (INGLATERRA, 2018) – Um diálogo entre Ken Loach e Gilles Deleuze – Lucas Beraldo e Jackeline Gameleira

Jackeline Gameleira (mestranda do PPGD/UFRJ e pós graduanda lato sensu em direito do trabalho e previdenciário da UERJ)

Lucas Beraldo (mestrando do PPGD/UFRJ)

ATENÇÃO: CONTÉM MUITOS SPOILERS

O cineasta inglês Ken Loach, aos 83 anos de idade, sempre e cada vez mais atual, há décadas denuncia em seus trabalho as consequências para a classe trabalhadora do desmonte do Estado do bem-estar social e do abandono de políticas redistributivas pela adoção do neoliberalismo nos dois lados do Atlântico, em filmes como “Pão e Rosas” (2000) e “Mundo Livre” (2007). Sua penúltima película, “Eu, Daniel Blake” (2016), ganhadora da Palma de Ouro no Festival de Cinema de Cannes, trata do desamparo e da burocracia kafkaniana que impede o trabalhador doente e necessitado de obter algum benefício previdenciário, assim como retrata o sacrifício diário de famílias pobres – especialmente monoparentais – para manter um estilo de vida digno para seus filhos.

Em seu mais recente filme, “Você não estava aqui” (2018), no original: “Sorry I missed you”, Loach debate as consequências da precarização das relações trabalhistas e a fuga do direito do trabalho por parte dos empregadores na produção atual. A história passa-se em Newcastle, na Inglaterra, e é protagonizada pelo casal Ricky e Abby, e juntam-se a eles o filho Sebastian (Seb), um adolescente, e a filha Liza Jane, uma criança. A família se encontra em uma crise financeira em razão de Ricky se encontrar desempregado. Como alternativa, inicia um trabalho uberizadopara uma empresa de logística que conta com “colaboradores” para fazer entregas, na forma de microempreendedores de si mesmos, que devem assumir o trabalho como se fossem uma empresa. 

Percebe-se que uma preocupação recorrente na produção cinematográfica de Loach é capturar a dinâmica atual do trabalho e seus efeitos sobre os indivíduos e instituições sociais. Neste intuito, o cineasta mostra-se muito atento em retratar como as formas contemporâneas de organização do trabalho afetam os trabalhadores, não apenas no cumprimento de suas tarefas profissionais, mas também em suas vidas privadas: suas relações familiares, de lazer, de amizade, de vizinhança e afins. Essa postura denota um esforço do diretor em não transformar o trabalhador em um indivíduo que existe apenas para o trabalho, mas retratá-lo como um sujeito que vive em sociedade, que sonha, que pensa, que cultiva valores morais próprios, enfim, um ser humano impossível de ser subsumido à maneira de produzir vigente.

            Para entender, afinal, o que é essa dinâmica nova do trabalho que afeta a vida das pessoas como um todo, é necessário um aparato teórico que também possa ultrapassar as ponderações exclusivas sobre as condições laborais e abarcar a vida cotidiana, as instituições e as tecnologias de forma ampla. Neste sentido, uma chave de leitura possível para pensar as transformações de que trata a obra cinematográfica de Loach é entendê-las como a transição de uma sociedade disciplinar para uma sociedade de controle, conforme nos traz Gilles Deleuze em seu visceral texto “Post-Scriptum sobre as sociedades de Controle”, [1] que será o referencial teórico central da presente resenha.

            A noção de sociedade de controle é apresentada por Deleuze como forma de dominação que emerge da crise aguda em que são lançados todos os projetos de confinamento que caracterizavam a sociedade disciplinar. O fim da 2ª Guerra mundial deixaria evidente, para o filósofo francês, que instituições basilares à sociedade disciplinar como a prisão, o hospital, a fábrica, a escola e a família estão condenadas em um prazo mais ou menos longo. No lugar desses sistemas fechados, a sociedade de controle instala suas próprias lógicas e tecnologias de dominação. 

            Por exemplo, a empresa – esta noção vaga, intangível – substitui, na sociedade do controle, a antiga fábrica. Enquanto a fábrica agrupava os indivíduos em um corpo único para vigiá-los, a preocupação central da empresa é instalar uma competição ininterrupta entre seus membros, opondo os indivíduos entre si. A formação permanente sob controle contínuo tende a suplantar a escola e seus exames pontuais. A instituição prisional, arquetípica da sociedade disciplinar passa, na lógica do controle, a implementar tornozeleiras eletrônicas e outras alternativas ao encarceramento, especialmente para pequenos delitos. Ganham nítida força, na atualidade, as formas ultrarrápidas de controle ao ar livre, de curto prazo e de rápida rotação, mas também contínuas e ilimitadas (Deleuze).

Eis o momento histórico crepuscular atual que Loach retrata em seus filmes, em que as antigas estruturas disciplinares ainda se sustentam e as novas instituições de controle ainda não se estabeleceram totalmente. Em “Você não estava aqui”, por exemplo, é central a tensão que emerge das novas exigências da lógica de trabalho dentro da sociedade de controle e as instituições centrais da sociedade disciplinar, como a família. O próprio título do filme é uma tradução que tenta manter o duplo sentido do nome no original, “Sorry, we missed you”. É a frase que consta no cartão da empresa de entregas, utilizada quando não há alguém para receber o pacote no endereço de postagem, mas que poderia estar sendo proferida também pela família de Ricky e Abby Turner, cujos filhos crescem sem ver seus pais, presos em suas jornadas de trabalho sem limite de horas, mal remunerados, sem cobertura a riscos da atividade laboral, enfim, precarizados ao extremo.

            De fato, o direito – como constata o próprio Deleuze – é uma instituição que encarna precisamente a natureza crepuscular da atualidade. Que as atividades profissionais como as de Ricky e Abby não sejam cobertas por direitos trabalhistas deriva de uma construção de zona cinzenta do trabalho e emprego[2] que possibilita tratar como prestadores de serviços autônomos trabalhadores que evidentemente têm características de uma relação de emprego. Os adultos em “Você não estava aqui” ilustram a realidade de um contingente de trabalhadores que não têm limite para jornada de trabalho, que não têm qualquer tipo de benefício previdenciário, nem uma boa remuneração, nem férias, nem intervalos, descanso semanal remunerado e ainda respondem pelos riscos da atividade pessoalmente, inclusive arcando com a aquisição e manutenção das ferramentas de trabalho exigidas pelo “patrão-colaborador”.

Essa dispersão do risco da atividade econômica tanto para consumidores, como para trabalhadores é, justamente, outra tendência da sociedade de controle. Se antes, na sociedade disciplinar, o padrão imperante era a concentração da propriedade nas mãos do capitalista para a produção eficiente, na sociedade de controle temos a dispersão como norma. O trabalhador vira proprietário do maquinário, mas não do negócio. Responde pelos custos de zelar pelos meios de produção, mas não consegue utilizá-los a contento sem a empresa logística, que controla a circulação e os contratos. A empresa de logística vira o ícone da produção na sociedade do controle, não mais a fábrica. Como as empresas não têm mais deveres trabalhistas, param de zelar por efeitos danosos ao trabalhador de tarefas extenuantes ou humilhantes exigidas na produção. Ao trabalhador é prometido trabalhar quando e quanto quiser, mas a empresa que controla sua remuneração exige jornadas que em muito ultrapassam os limites legais. 

Nesse contexto social, a utilização do marketing desponta como uma forma de controle importante para suavizar no âmbito do discurso e das ideias a transmissão do risco ao trabalhador. A liberdade é uma das ilusões difundidas por esta propaganda, prometendo apagar toda a submissão que acompanhava a figura do empregado. No filme, ela é evidenciada ao início, em que o supervisor expõe todas as vantagens do negócio, estimulando Ricky a aderir ao trabalho e enfatizando que ele seria seu próprio chefe. Nesse discurso, o trabalhador clássico, com as garantias legais, é visto com desdém.  

            É inegável que, diante das exigências do trabalho na sociedade de controle, não há como manter uma relação familiar nos moldes estabelecidos da sociedade disciplinar. Não que a família sempre tenha sido uma instituição de segurança e estabilidade, mas torna-se impossível vigiar os corpos, criar regras de convivência, desenvolver laços afetivos, não estando presente no espaço de confinamento disciplinar do lar. Por isso, a produção na sociedade de controle exige não só uma nova forma de trabalhar, mas também uma nova subjetividade: um novo indivíduo com uma nova moral, enfim, uma nova razão do mundo[3].  Um bom exemplo dessa nova subjetividade é dado por Byung-Chul Han, que afirma que no sistema neoliberal de desempenho, o sujeito culpa-se por não atender às expectativas depositadas nele – por mais infactíveis que sejam – ao invés de culpar as instituições injustas, o sistema ou as próprias metas[4].

            Nessa sociedade do controle, o marketing atribui ao indivíduo a responsabilidade pelo seu sucesso ou fracasso econômico, exige uma formação permanente, o cumprimento de metas e padrões impostos e alterados constantemente (Deleuze). Nesse contexto de culpabilização e de estímulos, há um embricamento de emoções, negativas e positivas. Essas emoções atuam no nível pré-reflexivo, anterior à consciência, sendo utilizadas pelo neoliberalismo para controlar os indivíduos (Han). 

As demandas produtivas, por óbvio, não geram por si só esse novo sujeito. Aqueles que precisam aderir aos termos do trabalho na sociedade do controle não sofrem uma lobotomia que os leva a esquecer os valores – emancipadores ou mesmo os valores internalizados da forma de dominação passada – de uma hora para outra. Além da já mencionada zona cinzenta jurídica, é importante um contexto social com alto índice de desemprego que gera um excedente de mão-de-obra para trabalhos pouco qualificados. Ricky, por exemplo, nunca havia trabalhado com entregas, mas com construção e reforma, antes de ficar desempregado.  

Outro mecanismo fundamental para a dominação na sociedade de controle é a dívida. Como afirma Deleuze, o homem não é mais o homem confinado, mas sim o homem endividado. Antes o trabalhador saía para o emprego em um espaço enclausurado como o da fábrica para garantir “o pão de amanhã”. Hoje trabalha supostamente livre, em espaço aberto, para quitar o seu passado. A dívida vira ferramenta de controle do indivíduo e o sujeito endividado não pode parar. Quando Ricky pede que Abby venda seu automóvel para pagar a entrada na van necessária ao seu novo emprego, mergulha a família na dinâmica da dívida que obriga todos a se comprometerem com um ritmo insano de trabalho para saírem do buraco da dívida. A dívida é pressuposto para a vaga no trabalho, e isso não é de forma alguma aleatório na sociedade de controle.

O trabalho de Abby torna-se ainda mais precário com a necessidade de se locomover por meio do transporte público, o que diminui seu tempo de vida familiar e seus intervalos para descanso. A realização do seu pagamento por visita, ou seja, por tarefa realizada, sem nenhum tipo de controle de jornada, mostra-se um dos principais fatores de precarização, como já previa Marx em O Capital. O trabalho a ser exercido por ela constantemente exige mais tempo do que formalmente previsto no contrato. A suposta liberdade em face do controle de jornada mostra-se perversa, pois é utilizada para acentuar a exploração da sua mão de obra. O trabalho por ela realizado é o de cuidado, e percebe-se que os responsáveis pela sua escala não estão preocupados com a qualidade do cuidado, e sim com as metas estipuladas, como demonstra a cena em que a trabalhadora tenta justificar seu atraso por situação causada por paciente idosa com Alzheimer. A dimensão do trabalho do cuidado, eminentemente feminino, não é deixado de fora do filme.

 Quanto a Ricky, vemos o quanto ele é cada vez mais enrolado na dívida, não só referente à aquisição do automóvel, quanto também em face da própria empresa para a qual trabalha, que exige o pagamento de diárias não cumpridas e do aparelho fornecido que foi danificado durante a prestação dos serviços. Dessa forma, pelo desenvolvimento da trama, as chances de escapar da armadilha não parecem ser muito favoráveis.

O aparelho da empresa é a clara representação da linguagem numérica como forma de controle dessa sociedade, que permite ou nega o acesso à informação (Deleuze). Todos os dias o protagonista possui uma quantidade de mercadorias a ser entregue em determinado tempo e determinada rota. O trabalho nunca acaba e a contraprestação depende da realização diária de todas as entregas. O exercício dessa forma de governo é modulável, altera-se a todo instante, conforme mostra Deleuze. Nada na sociedade de controle termina, analisa o referido filósofo.  

Apontando, por fim, para um horizonte mais otimista, Loach consegue explorar no filme um exemplo de uma nova forma de resistência que dobra a lógica da sociedade de controle contra si mesma. Seguindo à risca a ideia de liberdade e autonomia propalada pelo marketing da nova dinâmica profissional, Ricky leva sua filha para acompanhar suas tarefas na van, conversando e estreitando laços emocionais. Seu “patrão-colaborador”, ao tomar ciência do acontecimento, recrimina Ricky e diz que a empresa não permite isso. A resposta do entregador é simples e bela: “Pensei que eu fosse o dono do meu próprio negócio”. Verifica-se que, se estamos na sociedade de controle, a disciplina também é utilizada quando necessário à empresa e a resistência é afastada pelo uso do poder.

Com o decorrer da história, acompanhamos a transição entre um inicial estado de otimismo do protagonista – consequência da propaganda que foi realizada sobre a liberdade que ele teria como empreendedor para um estado de precariedade que se alastra pela sua vida e de Abby. Em alguns momentos em que o esgotamento toma conta de si, Ricky dorme ao volante, evidenciando como é perigoso colocar-se em total liberdade, sem garantias mínimas. Não é o negócio que fica em risco, mas sua própria vida. 

Fica evidente, nesse contexto, que ele possui apenas sua própria mão de obra para vender e um carro financiado. Ricky não possui capital reservado para investir no “negócio” e depende totalmente da organização da empresa de logística. Ele existe como entregador apenas por meio da intermediação de toda a estrutura da empresa para a qual trabalha. A ideia de ser empreendedor individual nesse cenário é insustentável e uma falácia.

O final do filme parece desalentador. No entanto, ele pode nos indicar a insustentabilidade desse conjunto de coisas que poderíamos chamar de neoliberalismo, que é um quadro maior da sociedade de controle. Em tempos de pandemia do Coronavírus de 2020 conseguimos perceber isso claramente, pelo esfacelamento das instituições econômicas e pelo retorno forte do confinamento e da disciplina sobre os corpos aludidos por Foucault. Também se percebe de forma mais nítida o duplo caminho que tomam os trabalhadores uberizados empreendedores de si mesmos: sucumbir à tragédia financeira ou sair para trabalhar, como o protagonista de “Você não estava aqui”, arriscando perder sua própria vida. Esperamos que após a tragédia que estamos passando haja a construção de uma nova normalidade, e não o retorno a essa perversa tão bem desenhada por Ken Loach.


[1] DELEUZE, Giles. “Post-scriptum sobre as sociedades de controle”. Conversações: 1972-1990. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992, p. 219-226

[2] AZAÏS, Christian. DIEUAIDE, Patrick, KESSELMAN, Donna. (2017) Zone grise d’emploi, pouvoir de l’employeur et espace public : une illustration à partir du cas Uber, Industrial Relations / Relations Industrielles, 72 (2), pp. 433-456. https://doi.org/10.7202/1041092ar

[3] DARDOT, Pierre. LAVAL, Christian. A nova razão do mundo. Ensaio sobre a sociedade Liberal. São Paulo: Boitempo, 2016.

[4] HAN, Byung-Chul. Psicopolítica. O neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Belo Horizonte: Ayiné, 2018.