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Contrato Hiper-realidade e Direito do Trabalho 4.0 – José Eduardo de Resende Chaves Júnior

José Eduardo de Resende Chaves Júnior1

* Image by rawpixel.com

«Realidade-virtual» era uma ideia nova. Mas já aparece outra, a de «realidade-aumentada» (Augmented reality), que faz emergir com mais força ainda o «hiper-real». A partir dessas noções pretendemos oferecer aqui, de forma concisa, um conceito mais operacional para o Direito do Trabalho das plataformas virtuais, o de contrato hiper-realidade.   

O conceito clássico de ‘contrato-realidade’, construído por DE LA CUEVA2, no alvorecer do século passado, a partir de uma decisão da Suprema Corte do México, como também seu desdobramento principiológico, desenvolvido por PLÁ RODRIGUEZ, o conhecido princípio da ‘primazia da realidade’, vêm sofrendo, de certa forma, uma distorção, na medida em que se sustenta, de forma descontextualizada, uma suposta a prevalência da realidade efetivada na relação de emprego, em detrimento de preceitos normativos ou contratuais tuitivos. Contrato-realidade não é bem isso.

Mario de la Cueva enfatiza a ideia de contrato-realidade, para contrapor a realidade da prestação do trabalho em detrimento de um acordo abstrato de vontade. Sua perspectiva era superar o contratualismo estrito, fundado exclusivamente na vontade das partes e num sentido emancipador da relação de emprego, ou seja, não como simples disposição sobre a compra-e-venda da energia humana, senão como uma instituição que procura elevar o homem a um patamar de existência digna.

Na mesma linha, Américo Plá Rodriguez, propôs o princípio da primazia da realidade como desdobramento do princípio-mater da proteção, não como prevalência factual da realidade, mesmo porque essa realidade, em essência, é a realidade da prevalência da vontade do mais forte economicamente.  

A apressada – e até literal – compreensão dessas perspectivas  poderia levar à prevalência de uma condição prejudicial ao trabalhador, em detrimento de uma disposição contratual benéfica ou mesmo de norma mais favorável.  O que nos conduziria, inevitavelmente, a uma paradoxal colisão entre princípios do Direito do Trabalho. 

A essência da ideia de Mario de la Cueva é, pois, a prevalência da realidade do trabalho sobre as disposições contratuais formais, não sobre as normas de tuição. Em suma, o conceito de contrato-realidade, muito embora possa ensejar um aparente paradoxo,  nunca prescindiu do caráter contrafático do Direito do Trabalho, ou seja, nunca dispensou a pressuposto de que os direitos sociais decorrentes do trabalho se imponham justamente como dever da parte mais forte, do ponto de vista econômico, na relação jurídica de trabalho. 

Com esses cuidados é que se pretende sustentar, aqui, a prevalência da realidade-virtual sobre a forma tradicional dos atos jurídicos, no mundo das plataformas tecnológicas de trabalho, de modo a configurar um novo contrato realidade-digital, que optamos por denominar contrato hiper-realidade

O decisivo, para se aferir o estrato fático da relação de trabalho, quando dirigida pelas novas tecnologias de comunicação e informação, é a realidade que emerge da rede produtiva, isto é, aquela que aparece do conjunto de fatores que promove a integração de várias soluções de comunicações, tecnologias de identificação e rastreamento, redes de sensores e atuadores com e sem fio, protocolos de comunicação avançadas e inteligência distribuída para objetos inteligentes3.  

A primazia da realidade-virtual, portanto, se dá como um parâmetro jurídico para dirimir controvérsias que decorram das novas relações de trabalho, com ênfase na prevalência do sistema, do software, do aplicativo e até mesmo do algoritmo oriundo do poder diretivo do empreendimento sobre disposições formalizadas. Prevalece a realidade-digital sobre a forma contratual.

Em outras palavras, na produção pós-industrial, juridicamente há de predominar o que decorre da gestão oriunda da inteligência artificial e não o acordo abstrato de vontade. É o determinado pelo programa ou aplicativo que vigora na prática e é o que decorre dessa realidade-virtual, do código-fonte, que deve ser considerado como substrato para a incidência do ordenamento jurídico, não as disposições emanadas da vontade formal das partes.

Code is law é a frase que foi consagrada por Lawrence Lessig, em seu livro de mesmo nome4 Na perspectiva de LESSIG, o determinante, na sociedade tecnológica da informação em rede, é o código-fonte dos programas e aplicativos, que rege na prática a regulação normativa, sobretudo no cyberspace, pois funciona segundo uma lógica diferente do mundo real5.

No direito processual norte-americano, já temos desde 2006 a chamada e-discovery, que é o procedimento pre-trial de exibição de provas eletrônicas, previsto na Regra 34 das Federal Rules of Civil Procedure, instituto que foi adotado, tanto pela Lei do Processo Eletrônico (art. 13 da Lei 11.419/2006), como pelo artigo 440 do CPC de 2015, que viabiliza a incidência prático-processual, no direito material, do contrato hiper-realidade

Para BAUDRILLARD, o «hiper-real» é a ultrapassagem do real, não sua simples representação, sua cópia, senão sua apresentação, traduzida em linguagem binária, em bits. Melhor seria pensar em termos de transpresentação do real, em simulação do real, em transposição de suas fronteiras legais, sintetizados na ideia baudrillardiana de «simulacro», porquanto o contrato em si já é uma performance, uma encenação, uma ficção jurídica.    

O contrato imerso no mundo dos códigos tem sua própria ficção jurídica superada pela inexorável  hiper-realidade do meio-ambiente virtual, comandado pela programação.  Não é mais uma ficção é o hiper-real.   O simulacro jurídico hiper-real, programável,  passa, assim, a preceder e a regular a realidade virtualizada, a cópia copiada,  a hiper-ficção jurídica, a precessão do simulacro6.

Em síntese, será o algoritmo que ditará as regras do negócio (jurídico7) e da prestação de trabalho, não as estipulações contratuais formais. Essas servem, sim, como marco e limite para se aferir eventual supressão de direitos – contratuais ou legais – daqueles sujeitados ao comando da inteligência artificial, não como expressão da vontade soberana das partes. 

AS PLATAFORMAS DE TRABALHO E A TERCEIRIZAÇÃO 4.0.  A intermediação do trabalho humano vai se modificando topologicamente, metamorfoseando-se digitalmente; em lugar de uma empresa prestadora de serviço ou de contrato temporário, entram em cena agenciamentos-nuvens, arranjos maquínicos de inteligência artificial, plataformas eletrônicas de trabalho, algoritmos de controle da mão de obra.

Essas plataformas conectam diretamente o tomador final com o prestador pessoal do serviço, a quem são transferidos os custos da produção. Os trabalhadores passam a ser detentores das ferramentas de trabalho, mas continuam despojados dos autênticos meios de produção digital em rede, que são o algoritmo e a estrutura de rede (cabling).

O trabalho na rede ora se apresenta como força criativa e conectada à multidão trabalhadora, que surge como potência (potentia) originária e destinatária do resultado de seu trabalho, como nos casos de produção e consumos colaborativos, solidários, em comunhão sinérgica à cooperação social em rede, ou seja, como multitude

Mas em seu duplo, o trabalho na rede aparece também como crowd, como mero agenciamento da massa de manobra, da maioria silenciada. O trabalho mudo, a distância e afastado da tutela da lei. (confira aqui nosso artigo do Conjur sobre a Multidão trabalhadora)

Um dos fundadores da nova ciência das redes, o físico Barabási, demonstra que ao contrário do que o senso comum intuía, os fenômenos de rede não têm uma concepção democrática. São, na verdade, arranjos hierárquicos, que tendem à concentração. A web randômica não é a mensageira do igualitarismo8

Já no início dos anos 2000 Barabási previa a concentração da internet em poucos hubs, como se vê hoje, com o chamado GAFA (Google, Amazon, Facebook e Apple).  A eles vêm se juntar a Uber e a chinesa Didi Chuxing, que adquiriu o controle da 99 brasileira e já é avaliada como a plataforma de trabalho mais valiosa do mercado mundial, ultrapassando a própria Uber. 

O recente relatório elaborado pela OIT, fruto de um trabalho profundo publicado no final de 20189, que envolveu trabalhadores de plataformas eletrônicas de 75 países, documenta as condições precárias de trabalho dos chamados crowdworkers

Esse trabalho em plataformas digitais consiste basicamente em micro-tarefas, repetitivas, tediosas, intensivos, turcos mecânicos10, mas com micro-pagamentos e até sem pagamentos, porquanto condicionados ao aceite unilateral e subjetivo do tomador do trabalho (sic!).

Salta-se do outsourcing para o crowdsourcing. A pessoa trabalhadora é reduzida à condição de dado digital massificado, computado pelo big data produtivo. Essa nova economia dos dados ultrapassa a sociedade simbólica, semiúrgica. Hiper-dados transcendem os signos. 

A rede dos dados enreda o trabalho vivo.   A pessoalidade do cidadão trabalhador só tem expressão no uso pelos algoritmos de aprendizado de máquina dos seus dados sensíveis, íntimos.  Consumidor e trabalhador comutados (emulados?) por códigos binários e bancos de dados.

Nesse cenário dramático, a sobre-exploração se potencializa e se expande, não se detém nas fronteiras territoriais, despreza legislações nacionais e tutelas legais.  Code is law, o código-fonte dos aplicativos supera a regulação normativa e se impõe como lei única do mais forte tecnologicamente.

Passa da hora, pois,  da construção de uma consistente doutrina jurídica, que dê conta da integração (analógica e digital) do ordenamento transnacional de tutela do trabalho, que possa fazer face ao imenso poder (potestas) virtual das megaplataformas universais. 

CONSIDERAÇÕES FINAIS.  A transição de uma economia industrial, material, analógica, da escassez, para uma economia digital, pós-industrial, da abundância de bits ainda não nos permite definir os seus contornos finais, mas já possível vislumbrar suas tendências e perigos, sobretudo no que toca ao âmbito da anomia regulatória e da concentração econômica.

O trabalho cooperativo em redes digitais tem potencial enorme de emancipação, mas a realidade demonstra que a tendência é uma arquitetura de rede hierarquizada, não democrática.   É necessário superar-se a perspectiva do crowdwork a benefício do multitudework.

Se o contrato-realidade foi um construto jurídico para ressaltar os limites do contratualismo puro e duro na esfera tuitiva do Direito do Trabalho, a ideia de contrato hiper-realidade pretende também desvelar a realidade potencializada na direção algorítmica  e atualizada no trabalho concreto, configurando, assim, uma perspectiva, não propriamente anti-contratualista, senão pós-contratualista da relação de emprego sob o impacto das novas tecnologias.

A adequada regulação do mundo digital do trabalho só é possível a partir do conhecimento, por parte dos juristas, a respeito da colossal potência de dominação (potestas), mas também de emancipação (potentia) que subsiste na energia de cooperação social em rede. O contrato hiper-realidade, nessa linha, apresenta-se, portanto, como uma proposta operacional para a estabilização das expectativas contrafáticas do Direito do Trabalho 4.0.

(1)  José Eduardo de Resende Chaves Júnior é Doutor em Direitos Fundamentais. Professor Adjunto dos cursos de pós-graduação do IEC-PUCMINAS, advogado e Desembargador aposentado do TRT-MG. Presidente da União Ibero-Americana de Juízes – UIJ e Diretor de Relações Institucionais do Instituto IDEIA – Direito e Inteligência Artificial.

(2)  DE LA CUEVA (1970, p. 453)

(3)  ATZORI,  IERA & MORABITO (2010)

(4)  LESSIG, Lawrence Code is Law: On liberty in cyberspace – version 2.0 – New York: Basic Books A Member of the Perseus Books Group, 2006 Disponível  em     http://codev2.cc/download+remix/Lessig-Codev2.pdf   Acesso em 17 FEV 2019

(5)  Falchetto Silva anota com propriedade que: “cabe identificar qual é o elemento técnico estruturador das relações no ciberespaço. A interação dos indivíduos com a rede se dá por meio do uso de aplicativos, programas de computador, que possibilitam ao usuário acessar informações, alimentar o sistema e tomar ações específicas.  Note-se que o usuário do sistema não tem, nesta condição, qualquer controle sobre as regras de funcionamento do aplicativo. Ele somente pode agir nos limites e formas preestabelecidos. Assim pergunta-se quem, de fato, detém o poder de definir tais limites e formas de interação do usuário com o espaço virtual? Transportando-se tal questionamento para o mundo do trabalho: na hipótese de oferta de serviços que envolvem trabalho humano, através de plataformas virtuais, os aplicativos, possui o trabalhador condições de avaliar ou de se insurgir contra alterações e punições do contrato de trabalho virtual? De quem seria o ônus da prova de alterações prejudiciais quanto ao seu perfil de usuário?”   FALCHETO SILVA (2017, p. 323)

(6)   Baudrillard formula o conceito de simulacro, que é a simulação que não tem mais como base o real; o real é apenas referencial, uma realidade-virtual. O reality show é um modelo hiper-real, de simulacro, que se emancipa e se desconecta do compromisso com a realidade. A simulação – o simulacro – passa a preceder o real. Cfr. BAUDRILLARD, 2003, p.8 

(7)  Prosseguindo em sua análise, Falchetto Silva registra que o código-fonte define “a forma como o espaço virtual, o ciberespaço, é experimentado. É capaz de moldar comportamentos e regular condutas, criando os instrumentos pelos quais novas relações e dinâmicas de trabalho serão constituídas, mantidas e finalizadas“.     FALCHETO SIVLVA (2017, p. 324)

(8)  BARABÁSI, 2009, p. 52

(9)  BERG, Janine; FURRER, M.; HARMON, E.; RAMI, U. e SIX SILBERMAN, M.  Digital labour platforms and the future of work: Towards decent work in the online world   OIT: Genebra, 2018

(10)  Turco mecânico que inspirou o nome da plataforma da Amazon, a Mechanical Turk,  foi uma máquina de jogar xadrez  do século XVIII, mas que era na verdade uma ilusão mecânica que permitia a um jogador de xadrez humano escondido a operar a máquina. 

Pandemia e uberização: o trabalhador lutando “sozinho” na guerra da sobrevivência – Murilo Carvalho Sampaio oliveira

*Foto de Nelson Almeida (AFP)

Murilo C. S. Oliveira 1

Nestes dias pandêmicos, os quem vivem do trabalho estão envoltos em muitas dificuldades e desafios para continuar trabalhando e se proteger do Covid-19. Os trabalhadores que se encontram reconhecidamente sob o manto de proteção legal – assegurados pela qualidade formal de empregados e assim sujeitos à aplicação do Direito do Trabalho – enfrentam o desafio de, abruptamente e sem estrutura ou preparação, engajar-se no teletrabalho ou continuar nos estabelecimentos empresariais com maiores riscos de exposição ao vírus.

Como disposto nas diversas legislações de urgência (MP´s 905, 927 e 936), a saída definida pela política legislativa foi a redução de direitos como suspensão contratual, redução de salários, negociação individual, antecipação de férias, entre outras, inclusive com o “lockdown” das regras constitucionais que exigiam a negociação feita com a participação sindical.

Se isto parece ruim, há um outro cenário muito pior para quem vive do trabalho. Para um outro conjunto de trabalhadores – aqueles que por escolha empresarial das plataformas digitais são formalmente classificados como parceiros e autônomos, a situação se torna muito mais tortuosa, pois não há, a princípio, nem mesmo essa proteção trabalhista “reduzida” pela pandemia. 

Motoristas de “aplicativos” da Uber e Cabify ou entregadores da Ifood ou UberEats são exemplos destes trabalhadores que sequer tiveram direito ao auxílio financeiro destinado aos desempregados e demais autônomos, pois a Presidência da República, sob justificativa de falta de fonte de custeio2, excluiu essas pessoas do conjunto de beneficiários do pagamento dos “seiscentos reais”, também chamado de corona voucher. 

A tônica então dos “uberizados”3 é a total informalidade e desproteção, apesar de estarem na “linha de frente” das ruas em tempos de guerra, prestando um trabalho essencial para a sociedade e assumindo sozinhos os riscos sanitários e econômicos da (falsa) ideia de empresários de si mesmos. 

Só este desamparo já contrasta com os fundamentos da ordem jurídica de dignidade e valor social do trabalho e os objetivos da nação que são “construir uma sociedade livre, justa e solidária”, “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais” e “promover o bem de todos” (vide arts. 1º e 3º da Constituição da República) que se aplicam a todos que são trabalhadores e não apenas aos que são qualificados como empregados. 

Por outro lado, a pandemia da Covid-19 ao demandar o distanciamento social acelera o processo em curso de digitalização de trabalho, expandido os sistemas de trabalho remoto e, concomitantemente, acelerando a “transformação digital” das empresas, dando maior visibilidade àquelas estruturadas em meios tecnológicos como são as plataformas digitais de trabalho. Um relatório feito pela Google e pela IAT4 apresenta um prognóstico –  “tudo se torna virtual” – indicando a aceleração da digitalização no campos do trabalho, educação e até de cultos religiosos, a consolidação da confiança no meio digital, a exemplo das compras no e-commerce e a demanda de trabalho via plataformas digitais, mas também sinaliza o desemprego, empobrecimento e concentração de renda.

O olhar para essas novas tecnologias e inovações nos modelos empresariais capta que, cada vez mais, as plataformas digitais de trabalho se apresentam como novo modelo de negócios e ascendem em diversos setores econômicos. Elas trazem grande eficiência tecnológica e econômica, causando disrupções5 nas formas de se relacionar, contudo, para os trabalhadores, ocasionam muita precariedade social e, nisto são continuidades do processo recorrente de precarização do trabalho em curso desde o pós-fordismo. 

A proliferação das plataformas digitais de trabalho vem corroendo as configurações do Direito do Trabalho6. O velho dilema trabalhista fundante retorna como tragédia: milhões de trabalhadores vendem sua força de trabalho, inclusive em extensas jornadas, em troca de parca remuneração, enquanto milhões são apropriados pelos titulares de plataformas digitais, tudo sob a forma jurídica de “parceria” numa relação de trabalho autônomo.

Particularmente no caso dos trabalhadores das plataformas sob demanda7, os motoristas e entregadores são classificados por estas empresas como parceiros e assim autônomos. Há bastante controvérsia nesta qualificação e definição de autonomia, tendo em vista que algumas destas plataformas estabelecem métodos de direção, controle e apropriação do resultado econômico do trabalho alheio.  

O novo arranjo da organização econômica atual – ora propagandeado como economia do compartilhamento, ora acusado de economia do “bico” (gig economy) – cria um mercado de trabalho em expansão apto a conferir alternativa econômica aos desempregados e também capaz de absorver os tempos ociosos, ou mesmo o período de repouso dos trabalhadores ocupados. Esse trabalho por “parceria” dos aplicativos ascende no mercado de trabalho como nova tendência de produtividade e organização laboral, sem a (tida como) “custosa” proteção dos direitos trabalhistas. Com a pandemia e o distanciamento social, as plataformas de entregas ou trabalho a domicílio irão expandir notoriamente sua atuação.

Entretanto, os trabalhadores destas plataformas continuam sendo enquadrados, sob o prisma formal-contratual, na posição jurídica de parceiros autônomos. São tidos como livres para se ativar ou desativar da plataforma no horário de sua escolha, contudo por ganharem tão pouco são impelidos sempre a trabalhar o máximo da jornada fisicamente possível. Curioso que na condição de autônomos, não têm liberdade para fixar o preço de seu trabalho, recusar clientes ou mesmo avaliar seu parceiro, a plataforma digital.

As circunstâncias fáticas dos trabalhadores de plataformas eletrônicas se afastame da clássica situação de subordinação jurídica, embora seja relativamente fácil a visualização de um poder fiscalizatório e disciplinar ou mesmos indícios de controle por nota mínima e recursos de gamificação, numa subordinação por algoritmo e escancaram uma clara condição de hipossuficiência, bem expressada nos baixos salários e longas jornadas8

Agrava ainda mais essa situação de precariedade, a transferência os riscos da atividade para os trabalhadores. Nos casos das plataformas de entrega, os trabalhadores são responsáveis pela aquisição e manutenção dos veículos, despesas de combustível, impostos sobre o veículo, seguro por acidente, além de outros, sofrendo ainda os riscos e custo econômico da ociosidade, visto que estão disponíveis para trabalhar e não receber pelo tempo à disposição. As inovações, sempre bem-vindas, devem propiciar concomitantemente vantagens aos envolvidos, sob pena de se tornarem expedientes criativos da conhecida exploração do homem pelo homem.

Justamente estes trabalhadores das plataformas que continuam nas ruas em tempos de pandemia ficam, então, tanto excluídos do Direito do Trabalho9, como do auxílio financeiro concedido aos demais autônomos e desempregados. Pela necessidade econômica, continuam indo as ruas, vendendo seus serviços neste contexto de “guerra” contra a pandemia, assumindo todo o ônus da autonomia de si, especialmente o risco da não obtenção de renda e de contrair o vírus pandêmico, no entanto sem nunca ter gozado do bônus – nem nos tempos anteriores de pujança e expansão das plataformas – desta atividade na economia digital.

Sem regulação e diante das controvérsias se o trabalho nessas plataformas seria controlado e dependente, sindicatos profissionais e o Ministério Público do Trabalho demandam na Justiça do Trabalho medidas urgentes de proteção sanitária e auxílio financeiro aos trabalhadores em plataformas como a Uber, Cabify e Ifood em diversos Estados. 

Estas decisões da primeira instância foram bastante diversas em seus conteúdos, naturalmente diante das circunstâncias de cada caso concreto e dos tipos de pedidos feitos. Em termos gerais, as decisões dos juízes trabalhistas garantiram proteção sanitária e auxílio financeiro ou salário. 

A liminar de São Paulo concedida cobra a Cabify (processo 1000531-71.2020.5.02.0007), estabeleceu o fornecimento de álcool-gel, lavatórios, máscaras, luvas, higienização dos veículos e e auxílio financeiro (1 salário mínimo por mês para quem contraiu a Covid). A liminar do Ceará (0000295-13.2020.5.07.0003) determinou pagamento de salário por tempo à disposição ou trabalhado (“remuneração mínima por hora efetivamente trabalhada ou à disposição” com base no salário mínimo) e para aqueles com Covid ou suspeita, além de medidas sanitárias (entregas gratuitas de Equipamentos de Proteção Individual, tais como máscaras cirúrgicas e preparação alcoólica a 70%). 

No entanto, a mais alta corte trabalhista, o Tribunal Superior do Trabalho – TST, suspendeu, em um processo de Minas Gerais (1000504-66.2020.5.00.0000), a imposição de adoção de medidas sanitárias pelo Uber em favor de seus motoristas, com base em questões processuais e na dificuldade de se encontrar alguns bens de proteção individual.

Este dissenso de julgamentos sobre situações assemelhadas revela que, até no campo judicial, há dificuldades para se assegurar a proteção aos trabalhadores de plataformas, ainda que eles sejam considerados como autônomos. Simples medidas sanitárias, como fornecimento de álcool-gel, foram derrubadas pelo TST, apesar do risco da continuidade do trabalho na pandemia por estes motoristas ou entregadores. 

Extrai-se, então, que proteção sanitária e a segurança econômica destes trabalhadores recairia na construção pela luta política sindical – via negociação coletiva com recorrência a movimentos grevistas – ou deveria ser transformada em lei. No entanto, há repertório de leis e da própria Constituição que permite, por simples interpretação, conceder dignidade a estes trabalhadores, sem se recair em “canto de sereia”10.

A concretização dos ditames constitucionais de proteção e dignidade a todo trabalhador impõe que o labor destes “uberizados” seja envolto de um mínimo de dignidade, materializada em uma segurança sanitária mínima (álcool-gel, higienização, luvas, máscaras e entre outros) e uma segurança financeira (salário mínimo ou auxílio financeiro). Isso constituiria um mínimo civilizatório de uma sociedade que é realmente solidária para com esse trabalhador que continua na trincheira das ruas, desprotegido e abandonado à própria sorte, em tempos de distanciamento social.

(1) Juiz do Trabalho Substituto na Bahia, Especialista e Mestre em Direito pela UFBA, Doutor em Direito pela UFPR, pós-doutorando na UFRJ e Professor Associado da UFBA.  

(2) Vide https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/05/bolsonaro-barra-motoristas-de-aplicativo-e-outras-categorias-em-vetos-a-ampliacao-do-auxilio-emergencial.shtml

(3) Uma leitura jornalística e crítica da Uberização como crítica à ideia de economia do compartilhamento pode ser encontrada em:  SLEE, Tom. Uberização: A nova onda do trabalho precarizado. São Paulo: Elefante, 2017.

(4) Google e IAT. Coronavírus: o mundo nunca mais será o mesmo. Disponível em: < https://www.sincovaga.com.br/wp-content/uploads/2020/05/1_5017503098675921079.pdf>. Acesso em 21.05.2020.

(5) Uma crítica a ideia de disrupção destas plataformas pode ser encontrada em: TEODORO, Maria Cecília Máximo; DA SILVA, Thais Claudia D’Afonseca; ANTONIETA, Maria. Disrupção, Economia Compartilhada e o fenômeno Uber. Revista da Faculdade Mineira de Direito, Belo Horizonte, v. 20, n. 39, p. 1-30, abr. 2017. ISSN 2318-7999. Disponível em: <http://periodicos.pucminas.br/index.php/Direito/article/view/14661/0>. Acesso em: 07 fev. 2019

(6) SILVA, Sayonara Grillo. O Brasil das Reformas Trabalhistas: Insegurança, Instabilidade e Precariedade. In: SILVA, Sayonara Grillo; EMERIQUE, Lilian; BARISON, Thiago. (Org.). Reformas Institucionais de Austeridade, Democracia e Relações de Trabalho. São Paulo: LTr, 2018. Disponível em: https://www.academia.edu/40538867/Reformas_Institucionais_de_Austeridade_Democracia_e_Rela%C3%A7%C3%B5es_de_Trabalho

(7)  DE STEFANO, Valerio. (2016). The Rise of the “Just-in-Time Workforce”: On-Demand Work, Crowdwork, and Labor Protection in the “Gig Economy”. Disponível em https://www.researchgate.net/publication/305163826_The_Rise_of_the_Just-in-Time_Workforce_On-Demand_Work_Crowdwork_and_Labor_Protection_in_the_Gig_Economy .

(8) OLIVEIRA, Murilo Carvalho Sampaio. O retorno da dependência econômica no direito do trabalho. Revista do Tribunal Superior do Trabalho, São Paulo, v. 79, n. 3, p. 196-215, jul./set. 2013, disponível in: https://juslaboris.tst.jus.br/handle/20.500.12178/50179.

(9) ASSIS, Anne; COSTA, Joelane; OLIVEIRA, Murilo. O Direito do Trabalho (des)conectado nas plataformas digitais. Revista Teoria Jurídica Contemporânea. v.4, p.246 – 266, 2019. Disponível em: https://revistas.ufrj.br/index.php/rjur/article/view/24367

(10) Vale a leitura do texto “O Romantismo e o canto da sereia: o caso Ifood e o Direito do Trabalho” de Rodrigo Carelli. Disponível em: https://rodrigocarelli.org/2020/03/04/o-romantismo-e-o-canto-da-sereia-o-caso-ifood-e-o-direito-do-trabalho/

RESENHA – “GIG – A UBERIZAÇÃO DO TRABALHO” (2019) – UMA ANÁLISE SOB A PSICOPOLÍTICA SEGUNDO BYUNG-CHUL HAN – Catia Cristina de Araujo Quarterolli Bastos e José Alexsandro da Silva.

O filme “GIG – A Uberização do Trabalho” (2019), dirigido por Carlos Juliano Barros, Caue Angeli e Maurício Monteiro Filho, apresenta aos cinéfilos o mundo dos trabalhadores por plataforma, em um amplo leque de atividades e situações, permitindo um panorama do chamado “trabalho digital” em sua crueza e, podemos dizer, crueldade.


A Repórter Brasil, responsável pela produção, é referência nacional no combate ao trabalho escravo e na promoção do trabalho decente. Assim, esse elenco de diretores (alguns dos quais também participaram da fundação da ONG) traz como diferencial a experiência com registros de labor degradante e extenuante que em nada lembram o conceito de trabalho decente proposto pela OIT e a excelente fotografia encontrada em outros documentários com a assinatura da entidade, como “Carne Osso – O Trabalho em Frigoríficos”.


“GIG – A Uberização do Trabalho” demarca muito bem o fenômeno mundial e crescente do trabalho que surge e se expande em épocas e regiões onde há grande volume de trabalhadores sem oportunidades de emprego, que aceitam receber, por tarefas específicas e mal pagas e sem exigência de especialização, valores cada vez menores. Uma distorção a partir da demanda sinalizada e bipada por aplicativos e plataformas digitais, que se autodeclaram mediadores entre clientes e prestadores de uma gama cada vez mais ampla de serviços, atraídos pela necessidade real de uma fonte de renda e pela falácia neoliberal do “empreendedor de si mesmo”. Assim, o filme apresenta a diversidade que o fenômeno possui, no que diz respeito aos tipos de serviços prestados, entre os quais, estão presentes os serviços domésticos, , motoristas, professores, locutores e, até mesmo, goleiro de “peladas”.


A presente resenha aborda a economia do “bico” e as transformações e fragmentações que ela promove nas relações de trabalho, sob a perspectiva da teoria de Byung-Chul Han, em sua obra Psicopolítica – O neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Se o ponto de partida da chamada Gig Economy era a ideia de compartilhamento, a lógica atual do sistema de “bicos” é individualizada e individualista ao extremo, depositando no trabalhador por aplicativo a responsabilidade por seu fracassso ou sucesso.


Tanto no documentário quanto no livro Psicopolítica – O neoliberalismo e as novas técnicas de poder, de Han, um primeiro ponto a se destacar é a exploração da noção de liberdade. Uma referência à liberdade que, no primeiro, se revela nos anúncios espalhados pela cidade, no sentido de ganhar dinheiro fazendo seu próprio horário e na quantia que a pessoa escolher, ao passo que, no livro, o autor introduz a ideia de que existe uma exploração da liberdade no qual, aparentemente, o sujeito vê-se livre de coerções e restrições externas, como horários e lugares fixados para o trabalho no antigo sistema capitalista de produção, porém mostra-se uma versão pior de seu antigo algoz, sujeitando-se a coações internas em forma de automonitoramento constante em busca de desempenho e formação continuada.


As empresas argumentam que sua função é apenas conectar os trabalhadores independentes com os consumidores finais, não se tratando, portanto, de uma relação entre empregadores e empregados. Dessa forma, os trabalhadores que atuam nesses serviços seriam clientes das plataformas, contratando seus serviços, correspondendo as taxas cobradas à contraprestação pelo serviço das plataformas.
O discurso do “seja seu próprio chefe” diz muito sobre a capacidade que o neoliberalismo tem de explorar a liberdade do indivíduo e o transformar em um empreendedor de si, e com isso, potencializa a extração da força de trabalho e aumenta o lucro. Nas palavras de Han, “vivemos em um momento histórico particular, no qual a própria liberdade provoca coerções. A liberdade de poder (Können) produz até mais coações do que o dever (Sollen) disciplinar, que expressa regras e interditos. O dever tem um limite; o poder não” (HAN, 2018, p. 9/10).
Nesse contexto, podemos falar do que Han denominou de “psicopolítica” que consiste, sinteticamente, na governança da sociedade mediante a exploração da psique humana. Enquanto a sociedade disciplinar teorizada por Foucault apresenta-se como forma de governança dos corpos (biopolítica), usando recursos normativos de coerção, a sociedade neoliberal do desempenho, conforme Han, utiliza-se de técnicas de poder que funcionam como estímulos positivos que atingem a mente humana e conduz a sociedade aos objetivos do capital (HAN, 2018, p. 34/36).


A definição de modo unilateral das regras do sistema por parte das empresas que administram a plataforma, como o preço do serviço, a percentagem que será descontada e destinada para o aplicativo e a forma de execução do trabalho, demonstra o intenso controle sobre a atividade.


O discurso empresarial, nesse contexto, visa a isenção de suas responsabilidades legais, isto é, trata-se de uma defesa retórica para escapar da regulação estatal, especialmente, no que concerne aos direitos trabalhistas. Nesse modelo, o trabalhador não possui qualquer proteção de direitos trabalhistas, participando, portanto, de uma relação de trabalho precária.


Nesse tipo de relação precária, o trabalhador está exposto a diversos riscos, sem que haja qualquer resguardo por parte das empresas proprietárias das plataformas. Para mencionar exemplos, temos os casos apresentados no documentário como assaltos de motoristas da Uber, em alguns casos seguidos de morte, além de acidentes de trânsito sofridos por motoboys. A necessidade do trabalhador faz com que se torne sujeito a condições cada vez mais precárias, uma vez que o medo de não ter trabalho leva-o a aceitar qualquer trabalho.


Além disso, o fenômeno da uberização expandiu-se para diversos ramos de serviços, não só aqueles já muito precarizados. Como bem descrito por um dos trabalhadores entrevistados no documentário, “a grande democratização desses últimos períodos está sendo a precarização das condições de trabalho, a precarização das condições de vida…”.


E em relação à renda obtida por meio das plataformas digitais, a promessa da liberdade pretendida com a figura do empreendedor de si mesmo começa a arrefecer, uma vez que não são claras as regras estabelecidas para serem fixadas as tarifas pelos serviços prestados, sendo as empresas por detrás dos aplicativos as proprietárias dos algoritmos que definem e coletam essas informações. Afinal, tão pouco poder de decisão é atribuído a esses ditos empreendedores, que só sabem o destino dos clientes a eles reservados após aceitarem a corrida. Tão pouco poder decisório que, inclusive, são banidos das plataformas caso recusem um determinado número de corridas ou entregas.


São frequentes os relatos de trabalhadores entrevistados para o filme no sentido de que, ao longo do tempo, aumentou o trabalho e diminuíram os ganhos financeiros. A título exemplificativo, no documentário, temos um caso de um motoboy que relatou: “…setembro de 2015, eu fiz quarenta e quatro serviços, fiz R$ 5.361, 64, vou pegar setembro de… aqui é 2015 né? Vou pegar setembro de 2016, um ano depois, [no vídeo o trabalhador mostra o seu celular com o aplicativo da empresa aberto e mostrando o valor de R$ 2.283, 45 para 93 entregas], o dobro de entrega e menos da metade, então tem alguma coisa de errado. É o quê? É um bico, eles tão fazendo da categoria um bico”. Dessa forma, como podemos falar em autonomia e liberdade se as regras determinadas unilateralmente pelas empresas determinam seus rendimentos?


Da expectativa de ser o empreendedor de si mesmo restou apenas o fator “risco”. Desse, as empresas desenvolvedoras dos aplicativos usados fazem questão de se desvencilhar. A gasolina, as rodas, os aluguéis, os acidentes e o pagamento (ou não) de seguros, todos muito bem alocados sob a responsabilidade do trabalhador.


Na visão de Ricardo Abramovay, entrevistado no documentário, o que caracteriza o empresário é a capacidade de trazer novidade por seu talento em sua área de atuação e disposição para correr riscos. Portanto, a mera exposição a riscos não é suficiente para caracterizar o empreendedorismo.


Segundo Han, o poder disciplinar “é um poder normativo que submete o sujeito a um conjunto de regras, obrigações e proibições, eliminando desvios e anomalias”, que tem a biopolítica como técnica de governança para esse tipo de sociedade, características do capitalismo. Para o autor, o neoliberalismo adota a psicopolítica, técnica de governança que tem a psiquê como força produtiva, de modos imateriais e incorpóreos, operacionalizados e otimizados por processos psíquicos e mentais, garantindo que o indivíduo aja sobre si mesmo, reproduzindo o contexto e dominação como sendo de liberdade, visando a melhora da eficiência e desempenho.


Esses mecanismos são direcionados para as emoções, que são recursos para alcançar mais produtividade e desempenho, de tal modo que o empreendedor de si mesmo enfrenta o esgotamento mental, representado por quadros como depressão e burnout. No contexto apresentado até aqui, mais um risco a ser assumido pelo empreendedor de si mesmo, visto que, positivando-se a pessoa em coisa: quantificável, mensurável e controlável (para usar os termos de Han), corre o risco de, ainda, ser irrelevante, que o documentário traz como uma ameaça maior do que a de ser explorado.


A exploração do neoliberalismo passa por três formas de expressão da liberdade, que são as emoções, o jogo e a comunicação. O jogo, ou a gamificação do trabalho, segundo Han, está representado pela sensação de êxito e recompensas imediatas que, no documentário, é apresentado, por exemplo, na narrativa de um trabalhador que atua como goleiro, arregimentado por meio de aplicativos, que demonstra muito entusiasmo por premiações como chuteiras, camisa ao atingir a marca de 100 jogos pelo aplicativo (que teria a máxima vantagem de ter a opção de variar a indumentária!), além de mensagens que oferecem bônus caso as corridas sejam feitas em determinados horários ou pelo quantitativo de corridas em um mesmo dia.


Da maneira que essas recompensas são postas, novamente o risco fica por conta dos trabalhadores: para atingir as metas estabelecidas para obtenção do bônus, o motorista corre mais, infringe mais leis (como avançar sinais), indo atrás de seu sustento, ao mesmo tempo em que tem que superar a concorrência de outros trabalhadores cadastrados no aplicativo.


As empresas alegam que seus prestadores de serviços são autônomos e, como resultado disso, não podem determinar a jornada de trabalho ou o local de trabalho, visto que tal atitude poderia configurar uma relação de emprego. Assim, com o intuito de que os trabalhadores prestem os serviços conforme seus objetivos empresariais, as empresas utilizam mecanismos baseados em incentivos psicológicos e técnicas descobertas pela ciência. Com isso, alcançam o objetivo de influenciar o local e o tempo do serviço [1].


Essas estratégias estão no campo do que é chamado de gamificação do trabalho que, apesar de não ser uma novidade, ganha maior relevância no que se refere às plataformas digitais que, através de suas interfaces (aplicativos), criam estruturas que se assemelham aos jogos eletrônicos, porém com aplicação voltada ao trabalho.


Desse modo, o fornecimento de bônus e premiações funcionam como incentivos que intensificam e estendem a jornada, uma vez que o trabalhador acaba sendo conduzido a almejar o cumprimento de determinadas metas para que tenha melhores resultados financeiros. Assim, aqueles que prestam serviços adentram o “jogo” e contribuem para a elevação da produtividade da empresa.


A gamificação funciona como técnica neoliberal que promove o aumento da produtividade, sem se valer da repressão direta por meio de sanções por descumprimento de metas e, sim, com incentivos positivos que cumprem a mesma finalidade, criando a aparência de liberdade. Recompensas rápidas geram motivação, pois trazem uma sensação de realização e, isso aplicado ao trabalho, significa mais trabalho.


Outro efeito desse processo é o sentimento de competitividade e individualismo em relação aos demais trabalhadores, vez que estão em concorrência direta com eles, o que vai no sentido contrário à ideia de colaboração que a economia do compartilhamento diz promover.


Diante disso, a união necessária para a luta por direitos e melhores condições de trabalho resta prejudicada, uma vez que os trabalhadores se fragmentam e acabam não se reconhecendo como um grupo que podem se fortalecer ao atuar em conjunto.


As plataformas digitais possuem amplo acúmulo de dados que lhes permitem ter ampla visão do negócio e do comportamento dos prestadores de serviço. Um dos recursos frequentemente utilizados, e que possui papel de destaque nessas estruturas, são os sistemas de avaliação.


Esses sistemas são formas de avaliar a prestação de serviço por parte do cliente final. A avaliação do trabalhador serve para demonstrar, em teoria, a qualidade do trabalho fornecido, assim como também, para a atribuição de sanções em caso de resultados insatisfatórios. A própria colocação do trabalhador na classificação geral da plataforma repercute na quantidade de serviços que irá receber e eventuais benefícios. Dessa maneira, os consumidores finais funcionam como uma espécie de massa de pequenos gerentes que fiscalizam a execução do trabalho.


A consciência de que estão sendo avaliados possui o condão de influenciar diretamente na forma de prestação, inclusive se submetendo a condições ou riscos aos quais não deveriam, mas que aceitam por receio de serem mal avaliados e correrem o risco de, até mesmo, serem desligados da plataforma, perdendo sua fonte de renda. Como exemplo dessa situação, é emblemático o depoimento de uma das trabalhadoras entrevistadas no filme que trabalha para uma empresa que oferece serviços de diarista: “Só sobe se for de escada, não limpa o vidro por fora, não é para lavar quintal porque quintal é arriscado. Se pedir para limpar o quintal, não lava…, mas como? Mas é uma coisa assim, se você não lavar, o cliente dá uma nota ruim e depois você não tem serviço, tua nota cai lá embaixo, você não tem serviço. Aí você arrisca, se cair… vai lá e lava”.


Outro problema desses sistemas é a falta de transparência. Os relatos de bloqueios de trabalhadores sem uma justificativa detalhada das razões que levaram a esse resultado drástico (muitas vezes a única fonte de renda) evidencia um controle hierárquico sem segurança alguma para a parte mais vulnerável da relação. Isso gera uma situação de desconfiança em relação à coerência da plataforma, que sustenta que o profissional é autônomo, mas toma atitudes suspeitas diante do exercício da liberdade do mesmo, como o caso do motoboy entrevistado no filme que faz o seguinte relato: “…e aí eu estava numa manifestação e fui bloqueado por conta de ter falado e esbravejado de que os valores não estão corretos. Por conta disso eu fui bloqueado e estou até passando dificuldade por conta desse bloqueio. Pedem uma série de documentos para você entrar na plataforma, né? Mas quando vai te descredenciar, você vira somente um número lá que eles apertam um botão e te tiram e você fica a ver navios”.


A grande vantagem e valor econômico dessas empresas está em sua capacidade de obtenção de dados, sejam dos trabalhadores ou dos clientes finais, identificando padrões de consumo e de preferências nos serviços. A quantidade de informações armazenadas, além disso, é estratégica para a tentativa de construção de sistemas automatizados de inteligência artificial que visam a substituição da mão de obra humana, entre outros objetivos não declarados, sob a promessa de que sirvam de base para o desenvolvimento de “carros automáticos do futuro”, por exemplo.


Entretanto, é necessário que esses serviços sejam regulados. Não podemos simplesmente comprar a ideia de que o barato hoje não vai custar caro em um futuro próximo. Seja do ponto de vista econômico, seja no próprio trato do serviço, pois, enquanto consumidores, estamos sendo atendidos por trabalhadores precarizados. Isso significa, por exemplo, que ao pegar uma viagem em um desses aplicativos de transporte, podemos ter, do outro lado, um motorista que está em uma longa jornada de trabalho, cansado e ao volante, aumentando o risco para nossas vidas e a deles.


Importante termos em mente, portanto, que a liberdade só existe enquanto coletividade e que o individualismo só serve para oprimir. Estarmos cientes dessa exploração psíquica e sermos sujeitos (não no sentido de submissão, como proposto por Han) das escolhas feitas, permite-nos tentar alguma forma de evitar o esgotamento e ansiedade tão característicos desse processo de culpabilização que a pressão por produtividade e desempenho nos impõe.


É a lógica do “bico” a serviço de quem tira vantagem da oferta de mão-de-obra barata e precarizada. Diante desse cenário, torna-se urgente fazermo-nos a pergunta inicial do filme: “Qual o risco que nós queremos assumir para que nossas necessidades sejam atingidas de uma forma mais barata?”

HAN, Byung-Chul. Psicopolítica. O neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Belo Horizonte: Ayiné, 2018.
[1] SCHEIBER, Noam. How Uber Uses Psychological Tricks to Push Its Drivers’ Buttons. The New York Times. New York, 02 de abril de 2017. Technology. Disponível em:https://www.nytimes.com/interactive/2017/04/02/technology/uber-drivers-psychological-tricks.html. Acesso em 10/05/2020.

O documentário está disponível na íntegra no site da Globo News, no Net Now e no Vivo Play

Primeiras linhas de um Direito Ecológico do Trabalho: lições da pandemia para um novo direito e uma nova razão do mundo – artigo de rodrigo carelli

“Nos deram espelhos, e vimos um mundo doente” (Índios, Legião Urbana)

A pandemia causada pela disseminação do vírus SARS-Cov-2, causador da doença COVID-19, tem várias lições a nos dar, se quisermos recebê-las. A primeira delas é a insustentabilidade absoluta do modelo anterior, baseado na exploração sem fim da mão de obra (rectius: seres humanos) e da terra (rectius: recursos naturais finitos do planeta Terra).

Nos próximos meses, e, muito provavelmente, anos, enfrentaremos dificuldades muito maiores do que estamos vivendo agora e ficará cada vez mais claro o fato do fracasso desse modelo, que em sua versão mais atualizada se encontra na passagem do neoliberalismo para o ultraliberalismo (que nada mais é do que o primeiro com suas intenções e métodos às escâncaras, como o autoritarismo e a plutocracia). Mas talvez mais importante constatar o fracasso é  identificar que a tragédia global está embutida no modelo neoliberal.

Essa é uma lição muito importante: os desastres ecológicos e sanitários – este, os do passado recente e os próximos –  tomam proporções catastróficas devido ao modelo. Em relação à crise da Covid-19, essa constatação é fácil: nosso estilo de vida tornou o vírus um potencial massacre de proporções mundiais. O vírus, provavelmente surgido de uma exploração animal claramente absurda, aproveitou-se da grande e furiosa circulação de pessoas no mundo para de maneira quase instantânea estar presente nos quatro cantos do mundo.

Entretanto, esta crise nos mostra que isso não seria suficiente para realizar o estrago que vivenciamos em termos de mortes, estilo de vida e economia: o que realmente causou o isolamento social e um alto número de mortes é a precarização de vida e trabalho e desmonte do Estado de Bem-Estar Social, tornando grande parte da população totalmente vulnerável.

Perceba-se que o que mantém o isolamento social como estratégia para combate à pandemia é justamente a insuficiência do sistema de saúde, sendo que os países em que não há um serviço público suficiente são e serão os mais atingidos, e aqueles com bom serviço público de saúde sairão melhor desta pandemia. Assim, é clara a ligação entre a presente crise e o modelo dominante.

Mas não é só isso: a constatação não é só de que a grandiosidade da crise é devida ao modelo adotado até aqui, mas também de que o neoliberalismo é absolutamente incapaz de fazer-nos sair dessa crise, para não dizer que ele só tem condições de piorar a situação. Assim, não se deve buscar a volta de uma normalidade que nos fez chegar até aqui, mas sim construir uma nova razão do mundo.

Essa nova razão do mundo pode bem ser a Social Ecologia. Outras lições que podem ser tiradas da pandemia indicam isso.

Temos que lembrar que a crise ecológica não foi suspensa com a pandemia: pelo contrário, ela se tornou mais visível. Águas límpidas surgem em balneários antes tido como inóspitos, céus azuis surgem acima de cidades antes que tinham um teto cinza sobre as cabeças de seus habitantes, salvando dezenas de milhares de vidas pela redução da poluição.

A continuação de uma sociedade baseada no consumismo levará à destruição do planeta, ou melhor, a extinção de nossa espécie e de milhares de outras que dependem de nossas ações. Deve haver claramente uma mudança na forma de vida na Terra no Antropoceno, baseada atualmente em um ilógico e insano axioma do crescimento eterno e contínuo, em um planeta finito, ou seja, de recursos também finitos.

Esse pressuposto só pode causar cada vez mais crises, progressivamente mais graves e mais traumáticas. Ora, justamente uma das lições mais claras da pandemia é que não precisamos comprar tanto. Se para salvar a economia temos que reabrir os negócios para voltarmos a comprar o que não precisamos nessas semanas de quarentena, o problema, logicamente, está na própria economia. Ou seja, uma outra economia deve ser criada, na qual não sejamos obrigados a comprar aquilo que não nos é necessário.

Outro ponto importante é a redução da nossa circulação. Esses dias trancafiados em casa demonstram que não é necessário que perambulemos tanto, o que nos expõe a todos os tipos de riscos e acarreta boa parte da poluição de nossas cidades. Se não iremos comprar tanto ou circular tanto, não precisaremos produzir tanto. E não é só isso: deveremos produzir de forma diferente, em cadeias locais de fornecimento, em produção e circulação direta, tanto de bens de consumo quanto de alimentação, aproveitando dos chamados “circuitos curtos” ou mesmo de tecnologias como as impressoras 3D. O comum deve estar presente nas novas formas de produzir e consumir.

Assim, o chamado “decrescimento” não será então tido como um mal, mas sim um objetivo a se atingir, um caminho e um método para a solução dos problemas dos seres humanos neste planeta. Isso somente será possível com a mudança do paradigma, é claro, e com o fim da lógica financeira como vetor da economia, com a eliminação do poder dos acionistas sobre os rumos das empresas e dos Estados, o que, no final das contas, determina a vida de todas as pessoas no mundo.

Obviamente deverá haver a redistribuição das riquezas no mundo para dar conta dessa nova realidade, por meio de tributos pagos pelos mais ricos a financiar as mudanças que deverão ocorrer para garantir uma relativa estabilidade na vida no planeta.

O Direito Ecológico do Trabalho será central na Social Ecologia. Para funcionar, de início, esse direito deve ser universal: seus destinatários não poderão ser classificados com o objetivo de eliminação de qualquer pessoa de sua abrangência. As categorias de empregado, trabalhador autônomo, trabalhador eventual, empresário, cooperado, todas perderão qualquer validade ou sentido. Outro ponto central do Direito Ecológico do Trabalho é uma radical mudança no que se considera como trabalho.

A pandemia nos ensinou que as pessoas têm diversos afazeres além do que se considera hoje como trabalho, ou seja, a realização de tarefas para outra pessoa em troca de remuneração. Na crise do Coronavírus percebemos claramente a centralidade das tarefas de reprodução social. Isoladas em casa, as pessoas compreenderam a importância do trabalho doméstico e do cuidado para a economia, ou melhor, para a vida na sociedade. É inegável que isso seja trabalho e é inadmissível que não seja valorizado.

O aprofundamento da relação das pessoas com os instrumentos virtuais e online faz com que as pessoas cada vez mais percebam que isso é trabalho: lives, posts, curtidas, textos, mensagens, tudo isso é trabalho que gera riqueza na sociedade e devem ser consideradas como tal. A higiene pessoal e cuidados com a saúde, como idas a médico e a dentista, ou cortar o cabelo, fazer pedicure e exercícios físicos, meditação, ioga, terapia ou mesmo tomar sol também são atividades humanas essenciais que devem ser considerados como trabalho, pois beneficiam toda a sociedade ao trazer saúde para seus membros. Aprendemos na pandemia que a enfermidade de um pode refletir na saúde da coletividade.

Assim, a definição de trabalho deve mudar para toda forma de atividade humana que tenha valor social reconhecido. Isso não quer dizer que toda forma de trabalho deva ser remunerada direta e proporcionalmente a uma tarefa realizada, ou que todos os beneficiados pelo trabalho sejam considerados empregadores, mas sim que todo trabalho deve ser valorizado de algum jeito (na forma de serviços públicos, por exemplo) e todos aqueles beneficiados pelo trabalho alheio, seja de uma pessoa definida ou a partir da multidão, direta ou indiretamente, deverão contribuir para essa valorização, seja remunerando o trabalhador ou pagando impostos que serão revertidos a toda a sociedade, e que, por óbvio, alcançarão aqueles que realizaram o trabalho.

Essa segunda forma de remuneração, inclusive, é a mais adequada ao trabalho da multidão, em que microtarefas são distribuídas por toda a sociedade, como por exemplo em posts em redes sociais e mensagens de WhatsApp ou mecanismos como o Re-Captcha. O conceito de empregador deverá ser alterado também, para retornar ao simples e efetivo “empregar ou utilizar alguém em sua atividade econômica”, dando margem à figura do co-empregador ou co-empregadores quando um trabalho beneficiar toda uma cadeia produtiva, que será integralmente responsável pelos direitos daquele que trabalha. O fim é de distribuir melhor a riqueza criada pela sociedade e que hoje deixa de ser remunerada e é apropriada por algumas pessoas.

O Direito Ecológico do Trabalho funcionaria teria um tripé de atuação: regulação estrita do tempo de trabalhogarantia da renda mínima universal e defesa do meio ambiente do trabalho. Passemos a traçar algumas ideias para cada um destes tripés.

Regulação do tempo de trabalho

O Direito Ecológico do Trabalho será central na Social Ecologia porque é essencial não somente para a valorização de atividades até agora segregadas do mundo dos direitos, como vimos acima, mas também para a redução da produção e do consumo, ou seja, do trabalho como o concebemos hoje, que deve ser readequado ao novo paradigma.

Nós atualmente não só consumimos demais: nós trabalhamos demais. E isso é central para o impacto na nossa sociedade. Duas horas de trânsito para ir ao trabalho, duas horas para voltar, e jornadas de 12 horas são completamente devastadoras da vida na Terra, e não é só para o trabalhador que tem a vida colonizada, mas indiretamente todos os que sofrem com o cataclisma ecológico.

Além disso, hoje há uma invasão do tempo de trabalho remunerado sobre o tempo de vida completamente inaceitável, que ficou ainda mais claro durante a pandemia, em que os trabalhadores sonham em retornar aos escritórios das empresas para proteger seu tempo de viver. O tempo de trabalho deve ser reduzido para a proteção das pessoas, para que não se adoentem e ocupem os hospitais de maneira desnecessária e indesejada.

Economistas afirmam que o nível de emprego anterior não será alcançado no curto ou mesmo médio prazo, devido à necessidade de medidas futuras para contenção do vírus e a profundidade da crise econômica, só comparável à década de 1930. Assim, este é o momento para alterações tão profundas quanto as realizadas após esse período de crise no século passado.

E uma primeira providência é justamente afastar a desculpa que não há trabalho para todos. Inicialmente, como vimos, isso decorre da utilização de um conceito propositalmente restrito de trabalho, que elimina a valorização de uma série de atividades humanas, em sua maior parte realizada pelas mulheres. Assim, a eliminação do viés de gênero do conceito atual de trabalho, além dos demais vieses que impedem que outras atividades sejam reconhecidas como trabalho, de pronto aumentaríamos o trabalho existente.

A partir disso, partiríamos para sua distribuição. E como distribuir? Bem, uma das principais variáveis para o emprego é o tempo de trabalho. Quanto maior a jornada de trabalho realizada em um país, menos pessoas ocuparão  postos de trabalho. Ao inverso, quanto menor a jornada máxima de trabalho, mais pessoas estarão ocupadas. A carga horária semanal deve ser diminuída até um ponto ideal em que a população economicamente ativa possa estar em atividade. Por óbvio, nesse sistema, não são permitidas as horas extraordinárias ou suplementares.

Essa limitação estrita da jornada deve ser realizada em relação a todo trabalhador, e não em relação a um emprego. Assim, se um trabalhador prestar serviços a mais de um tomador, essas cargas horárias deverão ser somadas. Como o enfoque sai do emprego ou mesmo do posto de trabalho e passa para a pessoa que trabalha, sempre visando aos fins da Ecologia Social, não há outra possibilidade. Como dito acima, essa regulação será realizada para qualquer tipo de trabalhador, não fazendo mais qualquer sentido a qualificação de autônomo ou empregado. A pandemia nos mostrou que certos valores de segurança e saúde da sociedade prevalecem sobre o interesse individual.

Da mesma forma como uma pessoa não tem o direito de descumprir as normas de isolamento social e frequentar ambientes como a praia ou uma boate, alegando que assume o risco de se adoecer, os trabalhadores não têm o direito individual de ultrapassar a jornada de trabalho, para proteção da sua saúde e de todos, para a proteção ao meio-ambiente, além do interesse social na distribuição do trabalho. A liberdade de uma pessoa começa e garante sua efetividade na própria delimitação dos atos de todos.

Para o cumprimento dos objetivos do Direito Ecológico do Trabalho, a forma de remuneração por tarefa ou produção deve ser proibida, por se tratar de forma conhecida de ultra-exploração do trabalhador há mais de cento e cinquenta anos.

Desta forma, a regulação da jornada assume um caráter muito maior do que o atual, que tem objetivos muito restritos e se submete ao interesse particular e imediato do trabalhador e do empresário. A carga horária também não pode ficar a cargo da autorregulação coletiva, exceto para a obtenção de redução da carga de trabalho, tendo em vista especificidade dos representados. Outro ponto de ligação entre o Direito Coletivo de Trabalho e a Social Ecologia é que as organizações representativas da sociedade, inclusive os sindicatos, devem ser ampliadas e se voltarem para a multidisciplinaridade e a visão holística dos problemas para perceber todas as suas facetas.

Garantia da renda mínima universal

As cenas divulgadas na imprensa do patético desespero de empresários e mesmo de trabalhadores que pedem a reabertura das empresas no meio da pandemia, mesmo pondo em risco a vida e saúde de toda a população, são a prova cabal de falência do modelo.

As pessoas, por óbvio, não devem ter que escolher entre a sua sobrevivência material e o risco de morte por adoecimento, algo como escolher entre morrer de fome ou morrer de doença, à procura de qual seria o mal menor. Desta forma, deve ser estabelecido o direito de viver:  uma renda mínima universal permanente que garanta a vida das pessoas em todas as situações e etapas da vida, independentemente de contrapartida.

O objetivo é justamente impedir que pessoas sejam impelidas a aceitarem qualquer trabalho, em quaisquer condições, dando-lhe a possibilidade de real exercício da autonomia da vontade, e não o risível arremedo que temos hoje. Obviamente que essa renda mínima deverá ser independente dos serviços públicos básicos gratuitos, como saúde e educação, que deverão ser de fato universalizados. Somente com a renda universal seria possível ao mesmo tempo realizar o decrescimento e impedir que as pessoas concorram pelos postos de trabalho, aceitando salários de fome e jornadas de morte, ou seja, é a base e condição do próprio Direito Ecológico do Trabalho.

Defesa do meio ambiente do trabalho

O Direito Ecológico do Trabalho, como parte da Ecologia Social, vai entender o trabalho de forma holística, inserido nas relações amplas entre as pessoas e os demais elementos deste planeta. O trabalhador será respeitado como mais um elemento da Gaia, e visto como um elemento central por ser hoje a principal força geológica do planeta. Assim, o meio ambiente do trabalho deve integrar-se totalmente com o meio ambiente em geral. A saúde e a higiene do trabalhador devem ser guarnecidas dentro e fora do ambiente de trabalho, não podendo haver qualquer diferenciação.

Um descontrole no meio ambiente de trabalho causa necessariamente distúrbios no meio ambiente e vice-versa. Os princípios ambientais da precaução e da prevenção deverão ser levados a sério e terão prevalência sobre axiomas tais como o da inovação ou progresso. A vida, dentro e fora da fábrica (conceito inclusive completamente ultrapassado), é o bem jurídico máximo a ser preservado, sendo inalienável e inegociável. Adicionais de insalubridade e periculosidade, por serem facetas de mercantilização da saúde, serão substituídos por incentivos positivos e negativos de eliminação dos riscos.

A produção, como perdeu a sua função de crescimento, que foi substituída pela de preservação, terá como principal norte a proteção ao meio ambiente do trabalho, que conjugará a proteção aos trabalhadores aos demais seres habitantes deste planeta.

Conclusão

Por óbvio, o Direito Ecológico do Trabalho e a Social Ecologia são somente uma possibilidade, não havendo nenhum determinismo que imporá essas soluções. Outras escolhas podem ser realizadas pela sociedade, inclusive o aprofundamento do ultraliberalismo e a consequente extinção da espécie humana. Tudo é política, e toda política é escolha. Também é evidente que essas primeiras linhas são apenas ideias iniciais, que podem se mostrar impossíveis, ou até erradas, o que somente pode ser verificado após muita discussão.

A ideia é justamente esta: discutamos essa alternativa. Para alguns pode parecer que essas ideias sejam utópicas. Para esses, poderíamos trazer em auxílio Fernando Birri: “a utopia está no horizonte. Eu sei que nunca a alcançarei. Se eu caminho dez passos, ela se afastará dez passos. Quanto mais eu buscá-la, menos a encontrarei, porque ela vai se afastando à medida que me aproximo. Então para que serve a utopia? Serve justamente para isso: para caminhar.”

Rodrigo Carelli é Professor de Direito do Trabalho e do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro e Procurador do Trabalho.

Foto: Pixabay

RESENHA – Você não estava aqui (INGLATERRA, 2018) – Um diálogo entre Ken Loach e Gilles Deleuze – Lucas Beraldo e Jackeline Gameleira

Jackeline Gameleira (mestranda do PPGD/UFRJ e pós graduanda lato sensu em direito do trabalho e previdenciário da UERJ)

Lucas Beraldo (mestrando do PPGD/UFRJ)

ATENÇÃO: CONTÉM MUITOS SPOILERS

O cineasta inglês Ken Loach, aos 83 anos de idade, sempre e cada vez mais atual, há décadas denuncia em seus trabalho as consequências para a classe trabalhadora do desmonte do Estado do bem-estar social e do abandono de políticas redistributivas pela adoção do neoliberalismo nos dois lados do Atlântico, em filmes como “Pão e Rosas” (2000) e “Mundo Livre” (2007). Sua penúltima película, “Eu, Daniel Blake” (2016), ganhadora da Palma de Ouro no Festival de Cinema de Cannes, trata do desamparo e da burocracia kafkaniana que impede o trabalhador doente e necessitado de obter algum benefício previdenciário, assim como retrata o sacrifício diário de famílias pobres – especialmente monoparentais – para manter um estilo de vida digno para seus filhos.

Em seu mais recente filme, “Você não estava aqui” (2018), no original: “Sorry I missed you”, Loach debate as consequências da precarização das relações trabalhistas e a fuga do direito do trabalho por parte dos empregadores na produção atual. A história passa-se em Newcastle, na Inglaterra, e é protagonizada pelo casal Ricky e Abby, e juntam-se a eles o filho Sebastian (Seb), um adolescente, e a filha Liza Jane, uma criança. A família se encontra em uma crise financeira em razão de Ricky se encontrar desempregado. Como alternativa, inicia um trabalho uberizadopara uma empresa de logística que conta com “colaboradores” para fazer entregas, na forma de microempreendedores de si mesmos, que devem assumir o trabalho como se fossem uma empresa. 

Percebe-se que uma preocupação recorrente na produção cinematográfica de Loach é capturar a dinâmica atual do trabalho e seus efeitos sobre os indivíduos e instituições sociais. Neste intuito, o cineasta mostra-se muito atento em retratar como as formas contemporâneas de organização do trabalho afetam os trabalhadores, não apenas no cumprimento de suas tarefas profissionais, mas também em suas vidas privadas: suas relações familiares, de lazer, de amizade, de vizinhança e afins. Essa postura denota um esforço do diretor em não transformar o trabalhador em um indivíduo que existe apenas para o trabalho, mas retratá-lo como um sujeito que vive em sociedade, que sonha, que pensa, que cultiva valores morais próprios, enfim, um ser humano impossível de ser subsumido à maneira de produzir vigente.

            Para entender, afinal, o que é essa dinâmica nova do trabalho que afeta a vida das pessoas como um todo, é necessário um aparato teórico que também possa ultrapassar as ponderações exclusivas sobre as condições laborais e abarcar a vida cotidiana, as instituições e as tecnologias de forma ampla. Neste sentido, uma chave de leitura possível para pensar as transformações de que trata a obra cinematográfica de Loach é entendê-las como a transição de uma sociedade disciplinar para uma sociedade de controle, conforme nos traz Gilles Deleuze em seu visceral texto “Post-Scriptum sobre as sociedades de Controle”, [1] que será o referencial teórico central da presente resenha.

            A noção de sociedade de controle é apresentada por Deleuze como forma de dominação que emerge da crise aguda em que são lançados todos os projetos de confinamento que caracterizavam a sociedade disciplinar. O fim da 2ª Guerra mundial deixaria evidente, para o filósofo francês, que instituições basilares à sociedade disciplinar como a prisão, o hospital, a fábrica, a escola e a família estão condenadas em um prazo mais ou menos longo. No lugar desses sistemas fechados, a sociedade de controle instala suas próprias lógicas e tecnologias de dominação. 

            Por exemplo, a empresa – esta noção vaga, intangível – substitui, na sociedade do controle, a antiga fábrica. Enquanto a fábrica agrupava os indivíduos em um corpo único para vigiá-los, a preocupação central da empresa é instalar uma competição ininterrupta entre seus membros, opondo os indivíduos entre si. A formação permanente sob controle contínuo tende a suplantar a escola e seus exames pontuais. A instituição prisional, arquetípica da sociedade disciplinar passa, na lógica do controle, a implementar tornozeleiras eletrônicas e outras alternativas ao encarceramento, especialmente para pequenos delitos. Ganham nítida força, na atualidade, as formas ultrarrápidas de controle ao ar livre, de curto prazo e de rápida rotação, mas também contínuas e ilimitadas (Deleuze).

Eis o momento histórico crepuscular atual que Loach retrata em seus filmes, em que as antigas estruturas disciplinares ainda se sustentam e as novas instituições de controle ainda não se estabeleceram totalmente. Em “Você não estava aqui”, por exemplo, é central a tensão que emerge das novas exigências da lógica de trabalho dentro da sociedade de controle e as instituições centrais da sociedade disciplinar, como a família. O próprio título do filme é uma tradução que tenta manter o duplo sentido do nome no original, “Sorry, we missed you”. É a frase que consta no cartão da empresa de entregas, utilizada quando não há alguém para receber o pacote no endereço de postagem, mas que poderia estar sendo proferida também pela família de Ricky e Abby Turner, cujos filhos crescem sem ver seus pais, presos em suas jornadas de trabalho sem limite de horas, mal remunerados, sem cobertura a riscos da atividade laboral, enfim, precarizados ao extremo.

            De fato, o direito – como constata o próprio Deleuze – é uma instituição que encarna precisamente a natureza crepuscular da atualidade. Que as atividades profissionais como as de Ricky e Abby não sejam cobertas por direitos trabalhistas deriva de uma construção de zona cinzenta do trabalho e emprego[2] que possibilita tratar como prestadores de serviços autônomos trabalhadores que evidentemente têm características de uma relação de emprego. Os adultos em “Você não estava aqui” ilustram a realidade de um contingente de trabalhadores que não têm limite para jornada de trabalho, que não têm qualquer tipo de benefício previdenciário, nem uma boa remuneração, nem férias, nem intervalos, descanso semanal remunerado e ainda respondem pelos riscos da atividade pessoalmente, inclusive arcando com a aquisição e manutenção das ferramentas de trabalho exigidas pelo “patrão-colaborador”.

Essa dispersão do risco da atividade econômica tanto para consumidores, como para trabalhadores é, justamente, outra tendência da sociedade de controle. Se antes, na sociedade disciplinar, o padrão imperante era a concentração da propriedade nas mãos do capitalista para a produção eficiente, na sociedade de controle temos a dispersão como norma. O trabalhador vira proprietário do maquinário, mas não do negócio. Responde pelos custos de zelar pelos meios de produção, mas não consegue utilizá-los a contento sem a empresa logística, que controla a circulação e os contratos. A empresa de logística vira o ícone da produção na sociedade do controle, não mais a fábrica. Como as empresas não têm mais deveres trabalhistas, param de zelar por efeitos danosos ao trabalhador de tarefas extenuantes ou humilhantes exigidas na produção. Ao trabalhador é prometido trabalhar quando e quanto quiser, mas a empresa que controla sua remuneração exige jornadas que em muito ultrapassam os limites legais. 

Nesse contexto social, a utilização do marketing desponta como uma forma de controle importante para suavizar no âmbito do discurso e das ideias a transmissão do risco ao trabalhador. A liberdade é uma das ilusões difundidas por esta propaganda, prometendo apagar toda a submissão que acompanhava a figura do empregado. No filme, ela é evidenciada ao início, em que o supervisor expõe todas as vantagens do negócio, estimulando Ricky a aderir ao trabalho e enfatizando que ele seria seu próprio chefe. Nesse discurso, o trabalhador clássico, com as garantias legais, é visto com desdém.  

            É inegável que, diante das exigências do trabalho na sociedade de controle, não há como manter uma relação familiar nos moldes estabelecidos da sociedade disciplinar. Não que a família sempre tenha sido uma instituição de segurança e estabilidade, mas torna-se impossível vigiar os corpos, criar regras de convivência, desenvolver laços afetivos, não estando presente no espaço de confinamento disciplinar do lar. Por isso, a produção na sociedade de controle exige não só uma nova forma de trabalhar, mas também uma nova subjetividade: um novo indivíduo com uma nova moral, enfim, uma nova razão do mundo[3].  Um bom exemplo dessa nova subjetividade é dado por Byung-Chul Han, que afirma que no sistema neoliberal de desempenho, o sujeito culpa-se por não atender às expectativas depositadas nele – por mais infactíveis que sejam – ao invés de culpar as instituições injustas, o sistema ou as próprias metas[4].

            Nessa sociedade do controle, o marketing atribui ao indivíduo a responsabilidade pelo seu sucesso ou fracasso econômico, exige uma formação permanente, o cumprimento de metas e padrões impostos e alterados constantemente (Deleuze). Nesse contexto de culpabilização e de estímulos, há um embricamento de emoções, negativas e positivas. Essas emoções atuam no nível pré-reflexivo, anterior à consciência, sendo utilizadas pelo neoliberalismo para controlar os indivíduos (Han). 

As demandas produtivas, por óbvio, não geram por si só esse novo sujeito. Aqueles que precisam aderir aos termos do trabalho na sociedade do controle não sofrem uma lobotomia que os leva a esquecer os valores – emancipadores ou mesmo os valores internalizados da forma de dominação passada – de uma hora para outra. Além da já mencionada zona cinzenta jurídica, é importante um contexto social com alto índice de desemprego que gera um excedente de mão-de-obra para trabalhos pouco qualificados. Ricky, por exemplo, nunca havia trabalhado com entregas, mas com construção e reforma, antes de ficar desempregado.  

Outro mecanismo fundamental para a dominação na sociedade de controle é a dívida. Como afirma Deleuze, o homem não é mais o homem confinado, mas sim o homem endividado. Antes o trabalhador saía para o emprego em um espaço enclausurado como o da fábrica para garantir “o pão de amanhã”. Hoje trabalha supostamente livre, em espaço aberto, para quitar o seu passado. A dívida vira ferramenta de controle do indivíduo e o sujeito endividado não pode parar. Quando Ricky pede que Abby venda seu automóvel para pagar a entrada na van necessária ao seu novo emprego, mergulha a família na dinâmica da dívida que obriga todos a se comprometerem com um ritmo insano de trabalho para saírem do buraco da dívida. A dívida é pressuposto para a vaga no trabalho, e isso não é de forma alguma aleatório na sociedade de controle.

O trabalho de Abby torna-se ainda mais precário com a necessidade de se locomover por meio do transporte público, o que diminui seu tempo de vida familiar e seus intervalos para descanso. A realização do seu pagamento por visita, ou seja, por tarefa realizada, sem nenhum tipo de controle de jornada, mostra-se um dos principais fatores de precarização, como já previa Marx em O Capital. O trabalho a ser exercido por ela constantemente exige mais tempo do que formalmente previsto no contrato. A suposta liberdade em face do controle de jornada mostra-se perversa, pois é utilizada para acentuar a exploração da sua mão de obra. O trabalho por ela realizado é o de cuidado, e percebe-se que os responsáveis pela sua escala não estão preocupados com a qualidade do cuidado, e sim com as metas estipuladas, como demonstra a cena em que a trabalhadora tenta justificar seu atraso por situação causada por paciente idosa com Alzheimer. A dimensão do trabalho do cuidado, eminentemente feminino, não é deixado de fora do filme.

 Quanto a Ricky, vemos o quanto ele é cada vez mais enrolado na dívida, não só referente à aquisição do automóvel, quanto também em face da própria empresa para a qual trabalha, que exige o pagamento de diárias não cumpridas e do aparelho fornecido que foi danificado durante a prestação dos serviços. Dessa forma, pelo desenvolvimento da trama, as chances de escapar da armadilha não parecem ser muito favoráveis.

O aparelho da empresa é a clara representação da linguagem numérica como forma de controle dessa sociedade, que permite ou nega o acesso à informação (Deleuze). Todos os dias o protagonista possui uma quantidade de mercadorias a ser entregue em determinado tempo e determinada rota. O trabalho nunca acaba e a contraprestação depende da realização diária de todas as entregas. O exercício dessa forma de governo é modulável, altera-se a todo instante, conforme mostra Deleuze. Nada na sociedade de controle termina, analisa o referido filósofo.  

Apontando, por fim, para um horizonte mais otimista, Loach consegue explorar no filme um exemplo de uma nova forma de resistência que dobra a lógica da sociedade de controle contra si mesma. Seguindo à risca a ideia de liberdade e autonomia propalada pelo marketing da nova dinâmica profissional, Ricky leva sua filha para acompanhar suas tarefas na van, conversando e estreitando laços emocionais. Seu “patrão-colaborador”, ao tomar ciência do acontecimento, recrimina Ricky e diz que a empresa não permite isso. A resposta do entregador é simples e bela: “Pensei que eu fosse o dono do meu próprio negócio”. Verifica-se que, se estamos na sociedade de controle, a disciplina também é utilizada quando necessário à empresa e a resistência é afastada pelo uso do poder.

Com o decorrer da história, acompanhamos a transição entre um inicial estado de otimismo do protagonista – consequência da propaganda que foi realizada sobre a liberdade que ele teria como empreendedor para um estado de precariedade que se alastra pela sua vida e de Abby. Em alguns momentos em que o esgotamento toma conta de si, Ricky dorme ao volante, evidenciando como é perigoso colocar-se em total liberdade, sem garantias mínimas. Não é o negócio que fica em risco, mas sua própria vida. 

Fica evidente, nesse contexto, que ele possui apenas sua própria mão de obra para vender e um carro financiado. Ricky não possui capital reservado para investir no “negócio” e depende totalmente da organização da empresa de logística. Ele existe como entregador apenas por meio da intermediação de toda a estrutura da empresa para a qual trabalha. A ideia de ser empreendedor individual nesse cenário é insustentável e uma falácia.

O final do filme parece desalentador. No entanto, ele pode nos indicar a insustentabilidade desse conjunto de coisas que poderíamos chamar de neoliberalismo, que é um quadro maior da sociedade de controle. Em tempos de pandemia do Coronavírus de 2020 conseguimos perceber isso claramente, pelo esfacelamento das instituições econômicas e pelo retorno forte do confinamento e da disciplina sobre os corpos aludidos por Foucault. Também se percebe de forma mais nítida o duplo caminho que tomam os trabalhadores uberizados empreendedores de si mesmos: sucumbir à tragédia financeira ou sair para trabalhar, como o protagonista de “Você não estava aqui”, arriscando perder sua própria vida. Esperamos que após a tragédia que estamos passando haja a construção de uma nova normalidade, e não o retorno a essa perversa tão bem desenhada por Ken Loach.


[1] DELEUZE, Giles. “Post-scriptum sobre as sociedades de controle”. Conversações: 1972-1990. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992, p. 219-226

[2] AZAÏS, Christian. DIEUAIDE, Patrick, KESSELMAN, Donna. (2017) Zone grise d’emploi, pouvoir de l’employeur et espace public : une illustration à partir du cas Uber, Industrial Relations / Relations Industrielles, 72 (2), pp. 433-456. https://doi.org/10.7202/1041092ar

[3] DARDOT, Pierre. LAVAL, Christian. A nova razão do mundo. Ensaio sobre a sociedade Liberal. São Paulo: Boitempo, 2016.

[4] HAN, Byung-Chul. Psicopolítica. O neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Belo Horizonte: Ayiné, 2018.

PERNAMBUCO EDITA MEDIDAS PROTETIVAS A ENTREGADORES/ PERNAMBUCO ADOPTS PROTECTIVE MEASURES TO COURIERS

The Pernambuco State government, through its Health Department, has issued an Ordinance providing for preventive measures regarding the risk of contamination by coronavirus among professionals in the transportation of goods and customers.The platforms were required to provide information and training in relation to Covid-19, as well as to provide protective equipment such as alcohol-gel, and space for cleaning vehicles and backpacks.  The Secretary of Health also determined that the companies follow the sanitary conditions issued by the World Health Organization, Ministry of Health and State and Municipal Health Secretariats. The full text of the Ordinance can be found below.

Ordinance SES/PE No 162 OF 16 APRIL 2020.

Provides on prevention measures regarding the risk of contamination by coronavirus among professionals in the transportation of goods and their recipients.

The HEALTH SECRETARY OF THE STATE OF PERNAMBUCO, in the use of its legal attributions conferred on the basis of the delegation of the governmental act No. 005, published in the DOE of January 1, 2019,

Considering the provisions of Decree No. 48,809 of March 14, 2020, which regulates, in the State of Pernambuco, temporary measures to address the public health emergency of international importance due to the coronavirus, as provided in Federal Law No. 13,979 of February 6, 2020;

Considering the increase in the number of confirmed cases of the disease in Pernambuco;

Considering the imperative need to adopt measures of prevention, caution and reduction of transmissibility; Resolves:

Art. 1. During the term of the state of emergency in health caused by the coronavirus, companies that carry out, promote or make viable, in any way, including through digital platforms, the delivery services of any products or goods, their own or those of third parties, within the State of Pernambuco, shall observe and adopt the following measures:

I – provide professionals in the transportation of goods with clear information and guidance regarding prevention measures, as well as sanitary, protective and social conditions so that the risk of contamination by the coronavirus during the exercise of their professional activities is reduced as much as possible;

II – orienting professionals in the transportation of goods to avoid, during their delivery, physical and direct contact with those who will receive them, restricting access to the entrance gateways or doors of the final address, so that the professionals of the delivery do not enter the common facilities of these places, such as elevators, stairs, entrance halls, and others;

III – provide and guide freight professionals to keep alcohol-gel (70%, or more) in their vehicles;

IV – train freight transport professionals to ensure that protection procedures are carried out effectively;

V – provide spaces for the hygienization of vehicles, bags that transport goods, helmets and jackets (uniforms), as well as accredit hygienization services;

VI – to send, to the establishments registered in digital platforms as takers of the delivery services, guidance as to the protection measures to the delivery professionals when withdrawing goods in their premises, as a necessary condition for the continuity of services.

§ For the purposes of the provisions of clause I of the caput, the sanitary, protective and social conditions to be provided to professionals in the transportation of goods shall comply with the official parameters and measures established by the competent bodies, such as the World Health Organization, the Ministry of Health, the State and Municipal Health Departments, as well as the respective councils.

§ With respect to the provisions of Clause VI of the caput, the following, among others, shall be considered compulsory protection measures: I – providing safe space for the removal of goods, so that there is as little direct contact as possible between people;

II – making alcohol-gel (70%, or more) available to delivery professionals, without prejudice to the availability of sinks with running water and soap so that they can properly sanitize their hands;

III – inform the company that controls the digital platform about the occurrence of a confirmed case of coronavirus among workers or frequenters of the establishment, of which they are aware.

Art. 2 – This Ordinance comes into force on the date of its publication.

ANDRÉ LONGO ARAÚJO DE MELO

State Secretary of Health

O governo do Estado de Pernambuco, pela sua Secretaria de Saúde, emitiu Portaria prevendo medidas de prevenção quanto ao riscões contaminação pelo coronavírus entre os profissionais de transporte de mercadorias e os clientes. Foram determinadas às plataformas obrigações de fornecimento  de informações e treinamento em relação à Covid-19, bem como fornecimento de equipamento de proteção como álcool-gel, além de espaço para higienização de veículos e mochilas. A Secretaria de Saúde determinou ainda que as empresas sigam as condições sanitárias emitidas pela Organização Mundial de Saúde, Ministério da Saúde e Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde. O texto integral do documento pode ser encontrado logo abaixo.

Portaria SES/PE No 162 DE 16 DE ABRIL DE 2020.

Dispõe sobre medidas de prevenção quanto ao risco de contaminação pelo coronavírus entre profissionais de transporte de mercadorias e destinatários destas.

O SECRETÁRIO DE SAÚDE DO ESTADO DE PERNAMBUCO, no uso de suas atribuições legais conferidas com base na delegação do ato governamental n° 005, publicado no DOE de 01 de janeiro de 2019,

Considerando o disposto no Decreto no 48.809, de 14 de março de 2020, que regulamenta, no Estado de Pernambuco, medidas temporárias para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, conforme previsto na Lei Federal no 13.979, de 6 de fevereiro de 2020;

Considerando o aumento do número de casos confirmados da doença em Pernambuco;

Considerando a imperiosa necessidade de adoção de medidas de prevenção, cautela e redução da transmissibilidade; Resolve:

Art. 1o Durante a vigência do estado de emergência em saúde causado pelo coronavírus, as empresas que realizem, promovam ou viabilizem, de qualquer forma, inclusive por meio de plataformas digitais, os serviços de delivery de quaisquer produtos ou mercadorias, próprios ou de terceiros, no âmbito do Estado de Pernambuco, deverão observar e adotar as seguintes medidas:

I – fornecer aos profissionais de transporte de mercadorias informações e orientações claras a respeito das medidas de prevenção, bem como condições sanitárias, protetivas e sociais para que se reduza, ao máximo, o risco de contaminação pelo coronavírus durante o exercício de suas atividades profissionais;

II – orientar os profissionais de transporte de mercadorias para, durante a entrega destas, evitarem o contato físico e direto com quem as receberá, restringindo acesso às portarias ou portas de entrada do endereço final, de modo que os profissionais da entrega não adentrem as dependências comuns desses locais, tais como elevadores, escadas, halls de entrada, e outros;

III – fornecer e orientar os profissionais de transporte de mercadorias a manter álcool-gel (70%, ou mais) em seus veículos;

IV – treinar os profissionais de transporte de mercadorias para que os procedimentos de proteção sejam realizados de forma eficaz ;

V – providenciar espaços para a higienização de veículos, bags que transportam as mercadorias, capacetes e jaquetas (uniformes), bem como credenciar serviços de higienização;

VI – expedir, aos estabelecimentos cadastrados em plataformas digitais como tomadores dos serviços de entrega, orientação quanto às medidas de proteção aos profissionais de entrega quando da retirada de mercadorias em suas dependências, como condição necessária à continuidade da prestação dos serviços.

§ 1o Para os fins do disposto no inciso I do caput, as condições sanitárias, protetivas e sociais a serem fornecidas aos profissionais de transporte de mercadorias devem obedecer aos parâmetros e medidas oficiais estabelecidos pelos órgãos competentes, como a Organização Mundial de Saúde, o Ministério da Saúde, as Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde, bem como os respectivos conselhos.

§ 2o Relativamente ao disposto no inciso VI do caput, consideram-se medidas compulsórias de proteção, dentre outras, as seguintes: I – disponibilizar espaço seguro para a retirada das mercadorias, de modo que haja o mínimo contato direto possível entre pessoas;

II – disponibilizar álcool-gel (70%, ou mais) aos profissionais de entrega, sem prejuízo da disponibilização de lavatórios com água corrente e sabão para que possam higienizar devidamente as mãos;

III – informar à empresa controladora da plataforma digital sobre a ocorrência de caso confirmado de coronavírus entre trabalhadores ou frequentadores do estabelecimento, de que tiver conhecimento.

Art. 2o Esta Portaria entra em vigor na data de sua publicação.

Justiça determina a Uber Eats que forneça equipamentos e condições de proteção aos entregadores face ao coronavírus

JUSTIÇA DETERMINA A UBER EATS QUE FORNEÇA EQUIPAMENTOS E CONDIÇÕES DE PROTEÇÃO AOS ENTREGADORES FACE AO CORONAVÍRUS

A Justiça do Trabalho de São Paulo determinou que a Uber Eats, no prazo de 48 horas, forneça aos seus entregadores informações sobre proteção em face do Coronavírus e em 3 dias atenda às condições sanitárias determinadas pelo Poder Público  voltadas à redução do risco de contaminação, inclusive com fornecimento de equipamentos necessários à proteção e desinfecção, como álcool em gel. Também foi determinado à empresa que realize as entregas sem contato físico, não permitindo que seus trabalhadores adentrem aos interiores dos edifícios e que nos restaurantes haja espaço seguro para retirada das mercadorias e um local com água corrente e sabão para que façam a higiene. Em relação aos trabalhadores no grupo de risco (como maiores de 60 anos de idade, portadores de doenças crônicos, imunocomprometidos e gestantes), ou pessoas dependentes nessa condição ou que sejam infectados pelo Coronavirus, foi garantida assistência financeira de subsistência. A decisão ocorreu no bojo de Ação Civil Pública promovida pelo Ministério Público do Trabalho, que vem dedicando especial atenção aos problemas relacionados ao trabalho na pandemia da Covid-19. A íntegra da decisão pode ser encontrada aqui. A petição inicial da ação civil pública pode ser acessada aqui.

BRAZILIAN COURT OF JUSTICE ORDERS UBER EATS TO PROVIDE EQUIPMENT AND CONDITIONS OF PROTECTION TO COURIERS AGAINST THE CORONAVIRUS

The Labor Court of São Paulo determined that Uber Eats, within 48 hours, provide its couriers with information on protection against the Coronavirus and within 3 days meet the sanitary conditions determined by the Public Power aimed at reducing the risk of contamination, including the supply of equipment necessary for protection and disinfection, such as alcohol gel. The company was also ordered to perform the deliveries without physical contact, not allowing its workers to enter the interiors of the buildings and that in the restaurants there must be a secure space for removing the goods and a place with running water and soap for them to do the proper hygiene. Regarding workers in the risk group (such as those over 60 years old, carriers of chronic diseases, immunocompromised and pregnant women), or who’s In charge of in this same condition or who are infected by Coronavirus, financial subsistence assistance has been guaranteed. The ruling took place in the Public Civil Action promoted by the Labor’s Prosecutors Office, which has been paying special attention to the problems related to work in the Covid-19 pandemic. The entire decision can be found here. The initial public civil action petition can be accessed here.