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LIVE DIA 23 DE ABRIL COM JOSÉ MARIA MIRANDA BOTO

O TRAB21 receberá no dia 23 de abril, sexta-feira, 12h (meio-dia) o professor JOSÉ MARIA MIRANDA BOTO, professor titular da Universidade de Santiago de Compostela, Espanha.

O tema será A negociação coletiva e a gig economy: atores.

Não percam! No canal do YouTube do Trab21: https://youtu.be/_x1aF2_Hiyw

pesquisa mostra os efeitos da pandemia em relação à advocacia

O Trab21, com o apoio da Caarj e da OAB-RJ, realizou a pesquisa “OS ADVOGADOS E A COVID-19: AS CONDIÇÕES DE VIDA E TRABALHO DA ADVOCACIA EM TEMPOS DE PANDEMIA”, que contou com a participação de 4.437 advogadas e advogados fluminenses. O objetivo da pesquisa foi verificar a situação da advocacia após o advento da pandemia.

O estudo mostra o impacto econômico, a alteração da forma de trabalho e as consequências na saúde dos profissionais da advocacia.

Em relação às consequências econômicas, destaca-se o impacto desigual dentro da categoria, sendo que 2 a cada 5 advogados perderam seu posto de trabalho após a pandemia. A maior parte da advocacia (2 a cada 3 advogados) teve redução de trabalho e de rendimentos após o início da tragédia.

Em relação ao trabalho, a quase totalidade da categoria (85%) passou a realizar trabalho à distância, utilizando instrumentos como o WhatsApp, que passou a ser ferramenta quase universal. A falta de estrutura do trabalho em domicílio é aparente na pesquisa, sendo que grande parte dos e das profissionais utilizam espaços improvisados em casa, o que causa conflitos familiares.

Em relação às consequências à saúde das trabalhadoras e trabalhadores, há uma clara sensação de piora no nível de vida (59%), atingindo sensações de cansaço (59%), estresse (63%), adoecimento psicológico (57%) e lesões osteomusculares (64%).

A pesquisa aponta para um possível “novo normal”, com o desejo da maior parte da advocacia em um trabalho realizado de forma híbrida. parte presencial e parte à distância.

A pesquisa foi realizada por Rodrigo de Lacerda Carelli (Coordenador) e por Jackeline Gameleira e Carlos Giannini, membros do Trab21.

Confira aqui na íntegra o relatório da pesquisa.

Com os dados pesquisa foi realizado o artigo científico “A advocacia em teletrabalho: um estudo sobre o impacto da pandemia da COVID-19 no exercício da advocacia no Estado do Rio de Janeiro”, que trata específicamente do teletrabalho na advocacia, tendo sido publicado na Revista Jurídica Trabalho e Desenvolvimento Social;

http://www.revistatdh.org/index.php/Revista-TDH/article/view/96

RESENHA DO FILME “EM GUERRA”: Os Trabalhadores nas Trincheiras da Guerra do Capital

Enquanto a terra não for livre, eu também não sou
Enquanto ancestral de quem tá por vir, eu vou…

– Emicida (música “Principia”)

Jelyson de Sousa Guimarães *

José Alexsandro da Silva **

ATENÇÃO: Contém spoilers!

“Em Guerra” (no original “En Guerre”) é um filme francês de 2018, dirigido pelo roteirista e diretor francês Stéphane Brizé, o qual também dirigiu outras obras magnificas como, por exemplo, “O Valor de um Homem” (França, 2015). Em Guerra recebeu a indicação para a Palma de Ouro do Festival de Cannes 2018.

A obra de ficção retrata uma história como tantas outras da realidade em que uma empresa multinacional alemã (grupo Dimke), fabricante de peças de veículos automotivos, decide fechar uma fábrica situada em uma pequena cidade da França (Agen), levando ao desemprego 1.100 trabalhadores (as). Contudo, a empresa havia recebido subsídios do governo e feito um acordo com os trabalhadores dois anos atrás em que retirava algumas bonificações e aumentava a jornada de trabalho sem aumento de salário em troca de garantir o emprego por cinco anos. Diante do descumprimento do acordo, os trabalhadores se recusam a aceitar a decisão e buscam formas de preservar seus empregos, como por exemplo, fechamento da fábrica retendo os materiais que ali estavam, protestos nas ruas, negociações, propostas, entre outras medidas. Um dos líderes do grupo é o personagem denominado Laurent Amédéo (protagonista), interpretado por Vincent Lindon.

O filme possui uma estrutura (trilha sonora, enquadramentos das câmeras etc.) que busca retratar o drama daqueles personagens da maneira mais realista possível, tanto que um telespectador desavisado poderia confundir a obra com um documentário. Também não seria estranho se ao ler a breve sinopse apresentada acima, o leitor fizesse associação ao caso do anúncio da Ford do dia 11 de janeiro de 2021 relativo ao fechamento de suas fábricas de Taubaté (SP), Camaçari (BA) e Horizonte (CE), no Brasil.

Essa noção da realidade que o filme se propõe a despertar no espectador aparenta ser uma estratégia audiovisual de aproximar e incluir a audiência no contexto do tema abordado. A maneira de tornar a obra mais realista possível ainda contou com o uso de chamadas jornalísticas com a identidade visual de canais verdadeiros de televisão e a atuação de pessoas que representam sua identidade genuína, seja como manifestante, jornalista e principalmente como componente das mesas de negociações travadas no roteiro.

O filme consiste em uma denúncia do processo de financeirização do mercado e os impactos sociais que podem decorrer disso. Nesse sentido, ressalta a existência de um processo organizacional que exerce maior influência no atendimento de interesses de pequenos grupos financiadores poderosos em avesso a abordagens governamentais e sindicais que, em suma, seriam coletivas, ou até mesmo das necessidades do trabalhador, sujeito que deveria ser prioritário. Assim, desvelam-se resultados desumanizados e autodestrutivos de um organismo que não se preocupa com sua manutenção estrutural e sim com o fluxo financeiro envolvido nas decisões.

Os interesses dos acionistas preponderam em relação aos do Estado e da sociedade. Isto pode ser observado no filme, uma vez que a fábrica Perrin que seria fechada estava dando lucro, mas não no volume desejado pelos acionistas. De tal modo, há uma questão relacionada ao embate entre a massa trabalhadora que se ocupa de atividade econômica em uma circunstância de dependência de garantia de sobrevivência e a suposta competitividade da fábrica em um contexto globalizado, uma vez que o índice que moveu todo o aparato decisório foi a eventual taxa de lucratividade baixa.

Vale ressaltar que o lucro gerado pela fábrica decorria também do financiamento que ela recebia do Estado por meio de subsídios e pelos próprios trabalhadores, diante da existência de acordo previamente estabelecido em que benefícios e até mesmo parte da renda dos trabalhadores eram cedidos em troca da manutenção de empregos que não foi cumprido. Esse aspecto é emblemático no entendimento desse complexo arranjo regido pelo capital financiador, pois aponta seu objetivo maior de captação de lucros em contrapartida ao seu desprezo evidente com as demais questões envolvidas. 

Além disso, a organização dos trabalhadores conseguiu negociar com uma empresa local para comprar a fábrica, porém, a multinacional negou a venda, o que se explica pela lógica financeira de que é mais vantajoso o fechamento da unidade do que adquirir um concorrente naquela localidade. O que norteia a decisão empresarial é o lucro dos acionistas independentemente dos efeitos deletérios para os trabalhadores e para a economia daquela comunidade.

Em um mercado globalizado, a possibilidade de ampla circulação de mercadores permite que a produção passe a ser organizada de maneira a buscar o máximo de vantagens possíveis em relação ao custo de força de trabalho, regimes fiscais, sistemas de previdência social e regimes jurídicos. Em outras palavras, devido a capacidade de movimentar mercadorias pelo mundo todo, as empresas procuram alocar a sua produção em Estados que possuam menores custos de mão de obra, tributação e sistemas previdenciários, ampliando assim, a exploração da sociedade (LAZZARATO, 2019, p. 63). Por esta razão, a financeirização concede lugar de destaque a circulação de mercadorias. Não por outro motivo, no filme em questão, a multinacional pretendia transferir a fábrica para a Romênia, onde o custo da produção seria menor.

Assim, as finanças inauguram uma nova lógica de composição do mercado global onde a produção se dá envolta de em um processo logístico, ou seja, aspectos relacionados a distribuição são levados em consideração na estrutura dos meios de produção. Desse modo, o local de instalação de uma fábrica, objeto dessa análise, segue a coerência do capitalismo coletivo circulante e fluido, o que explica os motivos da negativa da empresa em vender a fábrica, já que lhe interessa transferir a produção, mas não cede-la.

Nesse contexto, a empresa é dirigida pelo interesse do capital financeiro o que gera um processo de abstração e indiferença. Como a finalidade é o lucro e os financistas trabalham com base na abstração do dinheiro, podemos perceber uma apatia referente a como a produção acontece e os efeitos dela. Nas palavras de Maurizio Lazzarato, “a indiferença não é um traço psicológico, mas uma condição objetiva e subjetiva da produção do capital” (2019, p. 170).

Exemplo disso, é a alta das ações da Ford na bolsa de valores de Nova York (NYSE) no dia em que a empresa anunciou o fechamento de suas fábricas no Brasil. Nesse dia, as ações da Ford fecharam com ganhos de 3,33%, enquanto o Standard & Poors 500 (S&P500) que corresponde ao índice que engloba as 500 principais empresas da bolsa de valores dos Estados Unidos, indicava, no geral, uma baixa de 0,66% (SUTTO, FONSECA, YAZBEK, 2021).

Vale salientar que a preocupação dos personagens do filme em manter o emprego se justifica por várias razões. Uma delas, é a dificuldade de encontrar outro emprego pelo fato de que residem em uma cidade pequena com poucas oportunidades de trabalho, além disso, a idade avançada de muitos daqueles trabalhadores torna isso ainda mais improvável. Também, há uma preocupação social, tendo em vista o impacto deletério para a economia local.

O caso da Ford mencionado anteriormente, também apresenta semelhanças com essas preocupações. No momento em que foi anunciado o fechamento das fábricas da Ford, o Brasil detém um nível de desemprego alto. Durante o ano de 2020, a taxa de desemprego subiu de 11% para 14,3% (outubro de 2020), conforme Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD Contínua (IBGE). A perspectiva de conseguir um novo emprego é ainda mais restrita no contexto de crise sanitária decorrente da pandemia de Covid-19, pela qual, o país se encontra no momento do anúncio.

Soma-se a isso, o impacto que a decisão da referida empresa tem sobre a economia. Em relação a trabalhadores diretos, a Ford tem na unidade de Camaçari (BA) 4.604 mil, em Taubaté (SP), 830 e em Horizonte (CE), 470. Foi anunciado a demissão de cerca de 5 mil trabalhadores no total, como consequência, também serão afetados trabalhadores de toda a cadeia produtiva. Tal montante de demissões corresponde a uma perda potencial de mais de 118.864 mil postos de trabalho que dizem respeito a empregos diretos, indiretos e induzidos. A perda potencial da massa salarial é por volta de 2,5 bilhões por ano, relativo aos empregos diretos e indiretos, enquanto a queda de arrecadação tributária e contribuições gira em torno 3 bilhões por ano (DIEESE, 2021).

O que se observa na história retratada no filme, é uma representação da máquina de guerra. Há uma divisão na sociedade, a qual tem como consequência, uma oposição de forças. Este embate se manifesta por meio de estratégias de enfrentamento, incluindo a disputa no campo da técnica (LAZZARATO, 2019, p. 109/110). A guerra do capital visa tornar todos submissos à produção do valor, isto é, sujeitar a população às regras da produção do lucro (LAZZARATO, 2019, p. 68/69).

Durante o desenvolvimento da trama, o telespectador pode observar uma grande batalha pela manutenção do emprego. Os trabalhadores precisam enfrentar seus empregadores, a falta de uma atuação incisiva do governo francês e a conivência do poder judiciário que legitima a lógica de mercado presente na decisão da multinacional, ainda que a empresa tenha violado os acordos que firmou com os trabalhadores.

Na primeira reunião mostrada no filme, um dos representantes da empresa afirma que no ano anterior a margem de lucro da empresa tinha sido de 3,8%, enquanto a meta era de 7% e que “há um momento em que é impossível fazer balanços financeiros com uma margem assim!”. Pouco depois, em resposta a uma das lideranças dos trabalhadores, outro representante diz “Não é uma questão de piedade, Sra. Rover, é simplesmente uma questão de analisar os números”.

Percebe-se que o discurso baseado nos “números” possui um caráter simbólico. A linguagem com aspecto técnico, econômico, financeiro, contábil, entre outros, tem como objetivo a despolitização e despersonalização das relações de poder. Enquanto isso, os agentes sociais (mídia, políticos, especialistas etc.) são usados para conceder legitimidade para tal discurso (LAZZARATO, 2014, p. 41). Assim, é passada a ideia de que a decisão de fechamento da fábrica, por exemplo, não foi uma escolha da empresa e sim, uma consequência do mercado competitivo. A culpa deixa de ser da direção da empresa e é atribuída para um ser abstrato denominado de “mercado” e os que sofrem os impactos devem, simplesmente, aceitar a dura realidade.

Os trabalhadores tentam conseguir o apoio do Presidente da República para a sua causa e após vinte e três dias de conflito, conseguem ser recebidos pelo conselheiro social do Palácio do Eliseu (residência oficial do presidente da república francesa) que foi designado pelo presidente para buscar uma saída para o problema. Todavia, os representantes do Estado se colocam como agentes incapazes de intervir no caso porque isto poderia passar uma “mensagem negativa” para os investidores estrangeiros, e o máximo que podem fazer é dar um apoio moral. E mesmo depois do Ministro do Trabalho tentar contato com o Diretor Executivo da empresa, com o intuito de que este conversasse com os trabalhadores, não houve resposta.

Os trabalhadores ingressaram com uma ação judicial para que o poder judiciário suspendesse a decisão da empresa de encerrar suas atividades na cidade de Agen, tendo em vista que não cumpriram com o acordo feito. No entanto, o pedido foi indeferido. O judiciário reforça e legitima a relação de poder estabelecida e que prevalece o interesse do capital.

Trata-se de uma guerra em que não há paridade de armas. Em muitos momentos, a sensação é de impotência. Parece não ter saída para aqueles personagens. Tudo isso leva, inclusive, a conflitos internos entre eles.

Guerra essa que ocorre no campo ideológico como alternativa que culmina no exercício da supremacia de um sistema de organização econômica. Esse embate não necessariamente se dá abertamente com armas, apesar do uso da violência seja ideológica ou até mesmo física, uma vez que não há inimigos definido, mas apenas vencidos para governar. Essa guerra é silenciosa, arquitetada e compõe sofisticados elementos de dominação.

Um desses elementos de dominação estaria ligado a uma gestão composta de uma hierarquia em diversas camadas que dificulta o confronto direto do trabalhador e seu verdadeiro empregador, ou seja, aquele que tem o poder decisório nas mãos. A película trata dessa grande questão relacionada é a busca dos trabalhadores por uma negociação a qual possam confrontar diretamente seu oponente, ou seja, aquele em posição de decidir pelo fechamento ou não da fábrica. O enredo principal da trama está relacionado à pressão exercida pela greve, tentativas frustradas de encontros e negativas de diálogo direto. Esse processo destaca uma mudança nos procedimentos do capitalismo no que se refere ao distanciamento dos verdadeiros empregadores (o investidor) dos empregados.

Essa indisponibilidade de negociação direta entre empregados e empregadores é componente importante para a suposta resolução do problema em favor dos interesses financeiros, seja por simples indiferença ou pela pressão para aceite das condições de indenização, que nada mais é que a compra do emprego.

O capital se utiliza do monopólio legítimo de violência do Estado para garantir que essa estratégia seja eficaz. Observa-se, portanto, o “sequestro” do papel do Estado, defensor original dos direitos e garantias fundamentais do trabalhador, que além de seguir inerte nessa função, atua diretamente nas ações que favorecem as deliberações do empregador.

No filme a teia envolvendo a disfunção estatal percorre diversos segmentos como: a polícia militar que, ao ser acionada, age violentamente na estratégia de afastamento do contato entre os trabalhadores e a cúpula dirigente da fábrica no episódio em que ocorre a ocupação da entrada do prédio em que supostamente estariam os gestores; o executivo que é completamente ineficiente na auto programada tarefa de mediação entre as partes, favorecendo assim a estratégia de pacificação da decisão tomada e pressionando ao aceite da indenização; e o judiciário que ao ser indagado decide contrariamente aos trabalhadores mesmo diante da existência de acordo prévio estabelecido entre estes e seus empregadores.

A ação ou inércia de um Estado sequestrado, refém, impedido de agir, detentor de uma subjetividade controlada; é uma posição, aparentemente contrária a suas obrigações originais, mas munida do discurso relacionado ao bem coletivo e a sobrevivência institucional estatal, onde o receio da fuga de investimentos em caso de interferência seria o grande trunfo do sistema financeiro para mantê-lo submisso a suas vontades, já que o isolamento não é uma opção viável.

Após manifestações, atos e negociações sem sucesso, surge uma polarização entre os membros do movimento. De um lado aqueles que querem manter a greve e a resistência até o fim, entre os quais, está o protagonista Amédéo. Do outro lado, aqueles que preferem aceitar a proposta de indenização feita pela empresa, motivados pela necessidade imediata e descrença de que a manutenção da mobilização pode trazer resultados positivos. Pelo contrário, estes últimos, têm medo de que a empresa volte atrás com a proposta de indenização e acreditam que a conduta dos outros trabalhadores, liderados por Amédéo, levará a prejuízos para todos.

Na última mesa de negociação, em que finalmente conseguem falar com o presidente da companhia, tentam negociar a venda da fábrica para outra empresa. Porém, mesmo que os especialistas do Estado francês tivessem aprovado o projeto industrial e atestado sua viabilidade, o grupo Dimke se recusa a vender. Na saída da reunião, um grupo de trabalhadores revoltados chegaram a agredir fisicamente o presidente da empresa. Como resultado, alguns operários foram demitidos por justa causa e os demais tiveram suas indenizações reduzidas.

Os processos de negociação apresentados no caso demonstram uma certa fraqueza do movimento político envolvido que não encara as necessidades históricas e se esmera em uma contingência política pontual, em um processo de “motim” sem estratégias e individualista. Isso porque, apesar da ação enfática de um grupo pequeno liderado pelo protagonista, a insistente demanda individual daqueles que pretendem aceitar a indenização como pagamento de seus empregos, demonstram uma falta de consciência da posição de trabalhador e de sua força.

Em outras palavras, os indivíduos que ocupam a posição de trabalhador, força motriz principal do processo produtivo, logo, possível detentor de poder de barganha nesse processo, são empobrecidos em suas existências e cidadania em uma dinâmica de endividamento conjuntural que o torna dependente da atividade econômica para sobrevivência, adverso a sua posição de soberano da força de trabalho. Essa economia da dívida institui um sistema de recolonização do indivíduo que o torna insensível à consciência coletiva de uso da democracia como arma na solução de problemas, tornando-se “impotente” ao seu próprio processo de degradação, processo esse selado pela figura da indenização.

O fim do filme apresenta uma atitude radical de Amédéo, a autoimolação. O protagonista de “Em Guerra”, depois de gritos de protesto, atea fogo em seu próprio corpo em frente da sede do grupo Dimke (dono da Indústria Perrin), na Alemanha. O seu último ato foi lutando. Inclusive, a direção da empresa, após este acontecimento, renuncia a demissão por justa causa de treze trabalhadores e anunciou a retomada das negociações com o sindicato.

A autoimolação consiste em um auto sacrifício em prol de uma causa maior, servindo como protesto ou martírio. Um caso famoso e que ficou marcado na história, ocorreu no início de 2011, quando o tunisiano Mohamed Bouazizi ateou fogo em seu corpo como forma de protesto a condutas de autoridades estatais que haviam confiscado ilegalmente seus instrumentos de trabalho [1]. Este acontecimento, o qual, levou o jovem tunisiano a morte, causou comoção e revolta na população, marcando o início de uma série de protestos por mais dignidade na vida e contra a corrupção no mundo árabe, ficando conhecida como “Primavera Árabe”.

Vale ressaltar que não pretendemos aqui romantizar o suicídio ou defender a instrumentalização de pessoas para alcançar um bem maior, seja lá qual for. A intenção é somente ilustrar até que ponto pode chegar o desespero de alguém submetido a brutalidade da guerra que nos é imposta.

Amédéo pode ser entendido como um personagem que representa a luta dos trabalhadores, não apenas por ser um dos principais líderes da classe na trama, mas também porque é alguém que se coloca de “corpo e alma” na batalha. Ele entra em conflito com qualquer um que se oponha ao objetivo, sejam os representantes da empresa, seja até mesmo os trabalhadores que querem ceder às pressões. Apesar do cansaço e das represálias (pichações em sua casa e vidros de janelas quebradas), ele continua seguindo adiante.

Antes do suicídio, Amédéo visita sua filha que tinha acabado de dar luz ao neto dele. Observa-se que o filme não se preocupa em desenvolver as histórias pessoais dos personagens e tem seu foco voltado à luta. Por isso, o nascimento da criança não foi colocado por acaso, este evento pode ser interpretado como símbolo de esperança. Semelhante ao que ocorre em “Morte e Vida Severina” de João de Cabral de Mello Neto, diante da tragédia que se desenrola no contexto social dos personagens, a “explosão” da vida representa a persistência da renovação [2]. Além disso, funciona como um lembrete sobre a razão pela qual lutar, isto é, não só para buscar uma qualidade de vida melhor para nós, mas também, tentar deixar um bom legado para aqueles que estão por vir.

Por mais difícil que seja a realidade retratada na obra, entendemos que o filme busca passar a mensagem que é preciso continuar lutando, ainda que haja derrotas, ainda que o adversário seja gigante, pois só a luta pode trazer frutos. Não por acaso, o início do filme se dá com o famoso pensamento de Bertolt Brecht, “Quem luta, pode perder. Quem não luta, já perdeu”.

[1] Mohamed Bouazizi era um jovem de 26 anos que trabalhava com vendas de frutas e legumes. No dia 17 de dezembro de 2010 saiu para trabalhar, como de costume, mas naquele dia foi diferente. Segundo o relato de sua irmã Samya, três inspetores do governo o abordaram requerendo o pagamento de propina, mas Bouazizi se recusou a pagar. Assim, as autoridades confiscaram os produtos do jovem e colocaram no carro deles. Eles tentaram pegar as balanças, mas diante da resistência de Bouazizi, o agrediram. Então, ele foi até a sede do governo local para tentar ter seus bens de volta, porém, não foi recebido pelo governador. Revoltado, comprou combustível, jogou sobre o próprio corpo e colocou fogo. No início de janeiro de 2011, veio a falecer em decorrência das queimaduras sofridas. O contexto era de muita corrupção, nepotismo e incompetência na gestão, assim como também, nível de privações econômicas elevado. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2011/12/111217_bouazizi_primavera_arabe_bg>. Acesso em 19/01/2021.

[2] Aqui cabe um adendo para não gerar confusão no paralelo feito entre as obras. “Morte e Vida Severina” tratou do suicídio, naquele contexto, como uma desistência da vida decorrente de sua dureza, assim, o nascimento do bebê interrompe o suicídio. No entanto, “Em Guerra” trata o suicídio de modo distinto, uma vez que foi usado como forma de protesto, desse modo, o nascimento não foi capaz de impedir o ato.

* Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGD/UFRJ). Membro do Grupo de Pesquisa TRAB21.

** Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense (PPGSD/UFF). Membro do Grupo de Pesquisa TRAB21.

BIBLIOGRAFIA

DIEESE. Algumas informações sobre o anúncio de fechamento da Ford. Nota à Imprensa. São Paulo, 15 de janeiro de 2021. Disponível em: < https://www.dieese.org.br/notaaimprensa/2021/nota_imprensa_Ford.pdf>. Acesso em 25/01/2021.

GARDNER, Frank.O homem que ‘acendeu’ a fagulha da Primavera Árabe. BBC News. 17 de dezembro de 2011.Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2011/12/111217_bouazizi_primavera_arabe_bg>. Acesso em 19/01/2021.

IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua – PNAD. Séries históricas. Taxa de desocupação, jan-fev-mar 2012 – ago-set-out 2020.  Disponível em: <https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/trabalho/9173-pesquisa-nacional-por-amostra-de-domicilios-continua-trimestral.html?=&t=series-historicas&utm_source=landing&utm_medium=explica&utm_campaign=desemprego>. Acesso em 25/01/2021.

LAZZARATO, Maurizio. Fascismo ou Revolução? O neoliberalismo em chave estratégica. Traduzido por Takashi Wakamatsu e Fernando Scheibe. São Paulo: N- Edições, 2019.

LAZZARATO, Maurizio. Signos, Máquinas, Subjetividades. Traduzido por Paulo Domenech Oneto e Hortencia Lencastre. São Paulo: N- Edições, 2014.

SUTTO, Giovanna; FONSECA, Mariana; YAZBEK, Priscila. Sem Ka, nem EcoSport: Ford anuncia o fim da produção de carros no Brasil em 2021 e ações sobem na bolsa de Nova York. InfoMoney. São Paulo, 11 de janeiro de 2021. Disponível em: <https://www.infomoney.com.br/negocios/ford-fecha-fabricas-anuncia-fim-da-producao-de-carros-no-brasil-em-2021-e-demite-mais-de-5-mil-funcionarios/#:~:text=As%20a%C3%A7%C3%B5es%20da%20Ford%2C%20listadas,alta%20de%20mais%20de%203%25.&text=Apesar%20do%20%C3%A2nimo%20dos%20investidores,1%2C6%20bilh%C3%A3o%20em%202021.>. Acesso em 18/01/2021.

A ESPANHA REGULA O TRABALHO DOS ENTREGADORES DE PLATAFORMA: PRESUNÇÃO DE VÍNCULO DE EMPREGO e direito aos sindicatos de acesso ao algoritmo

Por Rodrigo Carelli

Após chegar acordo com os parceiros sociais, o governo espanhol vai editar decreto-lei em que presume o vínculo de emprego de entregadores por meio de plataformas digitais. Além disso, há a previsão de obrigação doas empresas de informar aos sindicatos os parâmetros, regras e instruções em que os algoritmos se baseiam.

A presunção da existência do vínculo de emprego é reconhecida àqueles que prestem serviços remunerados consistentes na entrega e na distribuição de qualquer produto de consumo ou mercadoria a empregadores que exercem as faculdades empresariais de organização, direção e controle de forma direta, indireta ou implícita, mediante a gestão algorítmica do serviço ou das condições de trabalho por meio de uma plataforma digital.

Assim, a norma espanhola reconhece expressamente o controle por algoritmos, também conhecida como subordinação algorítmica ou por programação.

Também é muito importante o dispositivo que prevê que é prerrogativa dos sindicatos ser informado pela empresa acerca dos parâmetros, regras e instruções em que se baseiam os algoritmos ou sistemas de inteligência artificial que afetam a tomada de decisões que podem incidir nas condições de trabalho, o acesso e a manutenção do emprego, incluída a elaboração de perfis.

Trata-se de importante avanço, apesar de incompleto, pois deixa as demais plataformas de fora (o que foi exigência da Confederação Espanhola das Organizações Empresariais – CEOE) , além de não conceder diretamente acesso ao algoritmo. Entretanto, é um primeiro passo muito importante no sentido de impedir a precarização do trabalho por meio da utilização de plataformas como escudo contra a proteção laboral.

A norma entrará em vigor em três meses.

Aqui está o texto da norma:

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SUPREMA CORTE DO REINO UNIDO CONFIRMA: MOTORISTAS DA UBER NÃO SÃO TRABALHADORES AUTÔNOMOS

Por Rodrigo Carelli

Em decisão histórica, que põe fim à questão do trabalho em plataforma nesse importante país, a Suprema Corte do Reino Unido confirma por unanimidade as decisões das três instâncias inferiores e reconhece que os motoristas da Uber são “workers”, e não trabalhadores autônomos, como queria a empresa. A decisão segue o caminho traçado pelas cortes máximas da Alemanha, França, Espanha e Itália,

A decisão enfatizou cinco elementos: 1. A Uber estabelece o preço do serviço; 2. os termos do contrato são impostos pela empresa; 3. A Uber controla o trabalhador que está conectado à plataforma, como monitoramento da aceitação de pedidos; 4. Uber exerce controle significativo sobre como os motoristas prestam serviços, como o sistema de notas; 5. A Uber restringe a comunicação entre motoristas e passageiros, impedindo que eles desenvolvam qualquer relacionamento além daquela corrida específica.

A corte utilizou a teoria do “Purposive Approach”, como enfatizada por Guy Davidov, citado expressamente na decisão, no sentido de que a interpretação de uma lei deve ser realizada a partir dos seus objetivos e o resultado interpretativo deve ser aquele que melhores efeitos dá a essas funções. A corte disse que a função geral do direito do trabalho, sem qualquer dúvida, “é proteger trabalhadores vulneráveis de serem pagos baixos salários pelo trabalho que eles façam, que sejam obrigados a fazer jornadas excessivas ou estarem sujeitos a outras formas de tratamento injusto”. Para os Lords e para a Lady que compõem a corte, o paradigma para quem o direito do trabalho foi desenhado é o empregado, mas que foi incluído também nessa proteção os “workers”, cujos requisitos são menos exigentes que os do primeiro caso. Isso se deu porque o objetivo da lei foi “estender os benefícios da proteção a trabalhadores que tenham a mesma necessidade desse tipo de proteção que os os empregados em sentido estrito – trabalhadores que são vistos como passíveis, qualquer que seja seu status formal, de serem obrigados a fazer jornada excessiva (ou (…) sofrerem deduções ilegais dos seus ganhos ou ser pago muito pouco).”

Para a Suprema Corte, assim, “a razão pela qual empregados são entendidos como necessitados dessa proteção é que eles estão em uma posição subordinada ou dependente em relação a seus empregadores: o objetivo da lei é estender a proteção para trabalhadores que estão, substancial ou economicamente, na mesma posição.”

Assim, a correspondência da subordinação e dependência dos empregados nos “workers” (trabalhadores), que os coloca na mesma posição dos empregados, é “o controle exercido pelo empregador sobre suas condições de trabalho e remuneração”. Essas relações não devem ser deixadas para o contrato resolver, necessitando atuação decisiva da lei.

Por isso, para encontrar os elementos da definição do status do trabalhador não deve ser buscado o nome da relação dado pelo contrato, o que seria “restabelecer os males que a legislação foi criada para evitar. É o próprio fato que um empregador está frequentemente em posição de ditar tais termos contratuais e que o indivíduo que executa o trabalho tem pouca ou nenhuma capacidade de influenciar esses termos que dá origem à necessidade de proteção legal em primeiro lugar”. Assim, a busca dos elementos deve ser realizada na realidade, e não no contrato, que deve ser comparado com a situação objetiva e as circunstâncias do trabalho, conforme a jurisprudência da Corte de Justiça da União Europeia.

Os termos do contrato foram escritos pelos advogados da Uber e apresentado aos motoristas, que só tinham a opção de aceitar se quisessem utilizar o aplicativo da empresa. A Corte afirmou que é improvável que muitos motoristas tenham sequer lido esses termos, e mesmo quem leu, não deve ter entendido seu significado legal. Não havia qualquer possibilidade de negociar seu conteúdo.

A Suprema Corte salientou que a lei diz que é nula de pleno direito qualquer previsão contratual que limite ou exclua a aplicação do direito do trabalho ou que impeça alguém a levar à Justiça ações para a defesa desses direitos. Desta forma, entendeu como nulos todos os dispositivos previstos nos termos de uso da Uber que tentavam dissimular e impedir a aplicação da lei.

Passando a observar o grau de controle exercido pela Uber, de início, a Corte afastou que o fato de uma pessoa ser livre para trabalhar ou não não é incompatível com o direito do trabalho, seja para considerá-lo como empregado (“employee”) ou trabalhador (“worker”). Deu o exemplo dos trabalhadores intermitentes ou safristas no campo. O que deve ser observado são as condições nos momentos em que estejam trabalhando e não quando não estão.

Aqui a decisão destacou os cinco fatores principais citados acima:

  1. “Primeiro e de maior importância, a remuneração paga aos motorista para seu trabalho é fixada pela Uber e os trabalhadores não têm qualquer voz em relação a isso (exceto escolher quando e quanto trabalhar).” O quanto de “taxa de serviço” cobrada pela Uber dos motoristas também é estabelecido pela empresa. A tarifa do serviço também é fixada unilateralmente pela Uber, salientando a decisão que havia a possibilidade de ser cobrado menos do que a tarifa estipulada, o que não ajudava em nada os trabalhadores, pois tal desconto sairia de seus próprios bolsos. Foi ressaltando que o controle sobre a remuneração era tal que a Uber decidia discricionariamente quando ou não deixar de cobrar de cliente que reclamava do serviço do trabalhador.
  2. Os termos contratuais são inteiramente ditados pela Uber, inclusive em relação ao serviço de transporte de passageiros, sendo que os trabalhadores não têm qualquer possibilidade de negociação.
  3. Embora os trabalhadores tinham a liberdade de escolher quando e onde trabalhar, uma vez que o motorista se conectasse ao aplicativo a sua escolha de aceitar pedidos de corrida estava limitada pela Uber. Segundo a Corte, a Uber exerce controle sobre a aceitação das corridas de duas formas: a) controlando e restringindo a informação fornecida ao trabalhador, pois o motorista não é informado sobre o destino do passageiro até pegá-lo, restringindo a possibilidade de negar corridas para destinos que não deseje ir por algum motivo; b) monitorando a taxa de aceitação e cancelamento das corridas, e realizando punições a partir dela, o que coloca os motoristas sob a subordinação à Uber.
  4. A Uber exerce um grau considerável de controle na forma de prestação de serviços. Afirma a Corte que, se os motoristas terem seus próprios carros possa significar mais controle do que a maioria dos empregados sobre seu equipamento de trabalho, a Uber estipula os tipos de carro que podem ser usados. Porém, a Corte ressalta que “Mais importante, a tecnologia que é imprescindível ao serviço é totalmente propriedade da Uber e por ela controlada e é usada como forma de exercitar controle sobre os trabalhadores.” A Suprema Corte entendeu que um método potente de controle é o uso do sistema de avaliação pelo qual passageiros dão nota ao motorista a cada viagem. Neste sistema, se o motorista não mantém uma média especificada pela Uber pode receber advertência e até resultar no término da relação com a Uber. O Tribunal alerta que o sistema da Uber se diferencia daqueles comumente encontrados nas plataformas digitais, pois a maior parte serve somente para incentivar o fornecedor a ganhar altas notas de satisfação dos clientes para atrair negócios futuros. O da Uber seria materialmente diferente, pois não há escolha de motoristas pelos clientes da Uber a partir das notas; os passageiros não têm escolha de motoristas com altos preços para motoristas com altas notas; o sistema de avaliação é utilizado pela Uber como pura ferramenta interna para gerenciar performance e uma base para tomar decisões finais em casos que trabalhadores não atingem os níveis de performance estabelecidos pela Uber. Afirma a decisão que “isso é uma clássica forma de subordinação que é característica da relação de emprego”.
  5. O último fator ressaltado é que a Uber limita a comunicação entre passageiro e motorista ao mínimo necessário para realizar uma viagem específica e toma atitudes para impedir que motoristas estabeleçam qualquer relação com um passageiro além daquela viagem. O recibo que fica com o motorista nunca é apresentado ao passageiro e esse documento só traz o primeiro nome do cliente e mais nada. Os motoristas são expressamente proibidos de trocar contatos com o passageiro. Isso criaria uma situação que impediria o motorista a oferecer um serviço diferenciado para melhor sua posição econômica a partir de suas habilidades profissionais ou empreendedoras. Repetindo o que já se havia dito desde a primeira decisão, “na prática, o único modo em que eles podem aumentar sua remuneração é trabalhando mais horas enquanto atinge as medidas de desempenho da Uber”.

A Suprema Corte afirma que os serviços são prestados de maneira padronizada pela Uber, e que os motoristas são percebidos pelos clientes como intercambiáveis, e não como motoristas individuais.

Há na decisão interessante comparação com plataforma digital de busca de quarto em hotéis: os quartos de hotéis não são padronizados pela plataforma, o nível de serviço é estipulado pelo fornecedor; o preço do serviço é estipulado pelo hotel; as avaliações são indicativos para os clientes escolherem o hotel e o quarto e não é usada para gerenciamento de performances; não há restrição de comunicação entre o hotel e o cliente, não havendo impedimento de que façam negócio diretamente no futuro. Tudo isso, segundo a Corte, indica que os fornecedores estão em concorrência uns com os outros para atrair clientes. Tudo isso, para a Corte, é completamente diferente do que acontece com a Uber.

Outro ponto importante da decisão é que foi considerado tempo de trabalho todo o tempo em que o motorista permanece conectado à plataforma, à disposição para trabalhar. A decisão afirmou que, caso o trabalhador esteja logado ao mesmo tempo em várias plataformas, isso deve ser analisado em cada caso e verificado o grau de envolvimento em cada plataforma.

Essa decisão é importante porque ela reconstrói os objetivos do direito do trabalho. Ela recompõe o sistema abalado por ficções que tentam dissimular algo que todos conseguem ver na realidade: a necessidade desesperada dos trabalhadores em plataforma de proteção estatal do direito do trabalho.

Reconstituir os objetivos do direito do trabalho é essencial neste momento de ataque nuclear que estamos sofrendo, sendo a decisão da Suprema Corte do Reino Unido uma aula nesse sentido, como já havia sido uma aula de Estado Democrático de Direito o julgamento do caso da ilegalidade de cobrança das custas na Justiça do Trabalho.

Percebe-se pela decisão que se houvesse o pedido de reconhecimento da condição de empregado seria concedido, pois em várias vezes é reconhecida expressamente a subordinação dos motoristas à Uber. O pedido foi realizado em relação ao “worker” porque seria estrategicamente mais interessante, pois teria mais chances de ter êxito e os direitos designados a essa categoria são quase os mesmos. Eles têm direito a salário mínimo, proteção contra descontos ilegais, feriados pagos, descansos, carga máxima de 48 horas semanas, proteção contra dispensa discriminatória, licença saúde, paternidade, adoção e licença parental compartilhada.

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Agradecemos ao Professor Pepe Chaves por ter disponibilizado a íntegra da decisão, que pode ser lida aqui: https://www.supremecourt.uk/cases/docs/uksc-2019-0029-judgment.pdf

CONHEÇA E INSCREVA-SE NO CANAL DO YOUTUBE DO TRAB21: https://www.youtube.com/channel/UCCR9y3PFYjbwU4ArtPqO_Ww

Lá você poderá conhecer o Podcast Cine Trabalho, que recebe um convidado em cada episódio para discutir uma questão relativa ao mundo do trabalho a partir de um filme, como o Indústria Americana, que Ricardo Antunes comentou no episódio mais recente.

TRIBUNAL HOLANDÊS DETERMINA QUE ENTREGADORES SÃO EMPREGADOS DA PLATAFORMA DELIVEROO

Por Rodrigo Carelli

Na Holanda, em ação coletiva ajuizada pela FNV (Federação Nacional de Sindicatos Holandeses), a Corte de Amsterdam negou que os entregadores da plataforma Deliveroo fossem trabalhadores autônomos, decidindo que seriam aplicados a eles a negociação coletiva dos trabalhadores em transporte de mercadorias. Foi afirmado que o contrato é padronizado, elaborado completa e unilateralmente pela plataforma, e inegociável. Percebeu a corte a existência de uma relação de autoridade entre a empresa e os entregadores e que os sistemas digitais da empresa que ligam os entregadores aos pedidos de entrega de refeições têm um papel central nesse fato, o que resulta, na prática, que a liberdade dos entregadores é consideravelmente menor do que o contrato afirma.[1]

A decisão foi confirmada pelo tribunal recursal, que afirmou que há a presunção de existência de relação de trabalho quando a atividade do trabalhador é realizada no ramo de negócio empresarial, pois há “um alto grau de conhecimento da própria atividade, o que permite dar (antecipadamente) instruções e exercer autoridade a esse respeito”.

Ressaltou que a Deliveroo altera constantemente o contrato com os entregadores e também a forma de organização do trabalho, demonstrando que exerce autoridade em relação aos entregadores. Assim, age como existente um contrato de trabalho, que é um contrato por adesão elaborado pelo empregador, que pode ou não ser aceito pelo trabalhador, enquanto o conteúdo de um contrato civil é negociado entre cliente e contratante. O Tribunal ressaltou o monitoramento constante por GPS realizado pelo algoritmo “Frank” da Deliveroo, entendendo que isso exerce pressão sobre o entregador, podendo verificar sua qualidade de trabalho ao longo do tempo, o que seria uma opção de controle de longo alcance, demonstrando com isso exercer uma forma autoridade.

Importante trazer uma parte dessa decisão, que descreve várias formas de controle que ao final o Tribunal vai entender como próprias de exercício da autoridade de um empregador:

A organização do método de trabalho Deliveroo descrito acima influencia a forma como as atividades são realizadas na prática. Onde anteriormente um número limitado de entregadores era designado para um determinado turno e um entregador designado para aquele momento sabia que havia uma boa chance de ele ser chamado, no Login Free System, um grande número de entregadores são registrados simultaneamente ao mesmo tempo. A competição para ser designado a uma entrega específica, especialmente em situações de tempo favoráveis, tem aumentado. A Federação Nacional dos Sindicatos Holandeses, sem ser contestada, também apontou isso. A atribuição de uma viagem é feita por ‘Frank’, porém – como foi considerado acima – não é claro com base em quais critérios isso é feito exatamente. Isso significa que a Deliveroo, que projetou e adapta continuamente o algoritmo ‘Frank’, está muito envolvida na maneira como o trabalho é executado. Isso é compreensível, porque Deliveroo, por exemplo, apontou que era difícil para ela usar os chamados “pedidos acumulados” (fundamento jurídico 2.7). Inicialmente, a Deliveroo definiu uma remuneração inferior para este (€ 3,75 contra € 6,00 para uma encomenda normal). Os entregadores não acharam isso atraente (o endereço do pedido acumulado pode estar muito longe do endereço do primeiro pedido). A fim de tornar mais atraente pegar esse pedido acumulado, a Deliveroo mudou seu sistema de recompensa para (atualmente) valores distintos fixos para uma viagem curta ou longa, respectivamente, complementados com um bônus quando apropriado (incluindo para uma viagem ininterrupta entrega de um certo número de refeições). A FNV apontou – não contestada pela Deliveroo ou não suficientemente fundamentada – que desde a introdução do Sistema de Login Free os bônus aumentaram enormemente em número e tipos. O fato de tal ter acontecido não parece ilógico ao tribunal, porque a remuneração base para uma viagem caiu drasticamente com a introdução do sistema de Login Free (de € 6,00 por viagem para uma média de € 3,50 ou € 4,80). A concessão de bônus aumenta a capacidade da Deliveroo de influenciar o comportamento dos entregadores (por exemplo, aceitar viagens que os distribuidores não teriam aceitado sem o bônus). O modelo de pagamento adotado unilateralmente pela Deliveroo também indica um envolvimento de longo alcance da Deliveroo no processo de entrega e, portanto, constitui uma indicação de autoridade.[2]

O Tribunal Recursal holandês ressaltou que os restaurantes e clientes veem os entregadores como parte da Deliveroo, e não como empreendedores independentes. Essa visão é incentivada pela empresa pois os clientes podem enviar reclamação diretamente à Deliveroo sobre um entregador específico. Foi ressaltado também o pagamento de um seguro de acidentes por parte da empresa em benefício dos entregadores e que a remuneração paga é tão baixa que torna inviável o pagamento pelos trabalhadores desse seguro. A baixa remuneração, segundo os magistrados, é indicativo da existência de um contrato de trabalho. O Tribunal entendeu existentes vários elementos que indicam a existência de um contrato de trabalho, como forma de pagamento da remuneração e autoridade exercida e que “a liberdade concedida aos distribuidores quanto à execução do trabalho não é incompatível com a qualificação do contrato como de emprego”.

Não cabe em tese recurso dessa decisão, tendo efeito nacional para todos os entregadores da Holanda.


[1] https://www.rechtspraak.nl/Organisatie-en-contact/Organisatie/Rechtbanken/Rechtbank-Amsterdam/Nieuws/Paginas/Bezorgers-Deliveroo-vallen-onder-arbeidsovereenkomst.aspx.

[2] https://uitspraken.rechtspraak.nl/inziendocument?id=ECLI:NL:GHAMS:2021:392

PUBLICADO ARTIGO DE PESQUISA DO TRAB 21 SOBRE A PLATAFORMA GETNINJAS E O CROWDWORK

A Revista de Estudos Institucionais – REI publicou artigo de autoria de Rodrigo Carelli e Angela Bittencourt que se intitula “NINJAS FAZEM BICO? UM ESTUDO DE PLATAFORMA DE CROWDSOURCING NO BRASIL”, resultado de pesquisa empírica realizada pelo Grupo de Pesquisa Trab21.

Eis o resumo do artigo:

RESUMO

O presente trabalho realiza uma análise sobre a plataforma de crowdsourcing GetNinjas. Baseado em pesquisa empírica, por meio de questionário semi-estruturado apresentado a vinte e quatro trabalhadores inscritos na plataforma, que se voluntariaram a responder às perguntas on-line em formulário eletrônico disponibilizado, o artigo conclui que o objeto de pesquisa pode ser definido como uma plataforma de crowdsourcing mista e genérica que atua tanto em nível global (on-line) quanto em nível local (off-line). O estudo, além de apontar problemas relacionados com a concorrência entre trabalhadores, em uma espécie de leilão negativo, e com a avaliação unilateral publicizada dos prestadores de serviços por parte dos clientes, sem a existência de um contraditório antes da qualificação, argumenta que a cobrança de “moedas virtuais” realizada pela empresa para os profissionais acessarem as propostas de trabalho não é lícita, tendo em vista o princípio da não-mercantilização do trabalho, a Convenção nº 181 da OIT (Organização Internacional do Trabalho) e a aplicação analógica da Lei nº 6.019/1974.

O artigo pode ser baixado em PDF aqui: https://www.estudosinstitucionais.com/REI/article/view/499

Resenha do Documentário “A 13ª emenda”: a perpetuação da escravidão na “Terra da Liberdade”

Eneida Maria dos Santos*
Natália Soprani Valente Muniz**

Atenção! Contém (muitos) spoilers.

O documentário “A 13ª Emenda” expõe ao espectador o processo de construção da imagem da população negra nos Estados Unidos da América e quais são suas consequências na sociedade estadunidense. A partir de uma análise criminológica da promulgação e aplicação da 13ª emenda à Constituição dos EUA, o filme, que está disponível na plataforma Netflix, expõe a atual condição das minorias raciais no país, enfatizando principalmente as questões relacionadas ao sistema prisional dos EUA, sua super-representação negra e o trabalho forçado a que estes indivíduos estão submetidos.

Ava DuVerney é a brilhante diretora do documentário e a mulher afro-americana que mais arrecadou bilheteria na história dos Estados Unidos[1]. A obra foi indicada ao Oscar no ano de 2017 de Melhor Documentário e conquistou importantes prêmios do cinema, como o MTV Movie and TV Awards de Melhor Documentário, em 2017. Outro importante filme produzido por Ava foi “Selma”, que retrata a Marcha de Selma a Montgomery, uma manifestação por direitos civis e trabalhistas em prol da segregada população negra dos Estados Unidos mobilizada por Martin Luther King Jr. e ativistas de direitos civis em 1965.

Apesar do documentário retratar o trabalho escravo nos presídios estadunidenses sob um olhar criminológico, a presente resenha irá abordar a questão à luz do Direito do Trabalho e, para tal propósito, utilizará como principal referencial teórico o texto “Race, Labor and the Future of Work” de Ifeoma Ajunwa. Ifeoma Ajunwa é mulher negra, nasceu na Nigéria e imigrou para os EUA com 14 anos. Ifeoma iniciou sua vida profissional como advogada e atualmente é professora da Universidade de Cornell, no Departamento de Relações Trabalhistas, Direito e História. Sua principal área de estudo é a intersecção entre direito e tecnologias, além de diversidade e inclusão no mercado e local de trabalho. Em “Race, Labor and the Future of Work”, Ifeoma analisa o potencial das novas tecnologias em ampliar a desigualdade econômica das minorias raciais.

O documentário de Ava Duvernay retrata a exploração da mão de obra negra nos Estados Unidos em diferentes momentos históricos. A diretora destaca que, dependendo do período político, econômico e social vivenciado, houve necessidade de se construírem novas políticas e narrativas que amparassem legalmente a continuidade da sujeição dos afrodescendentes a trabalho forçado, gratuito, precário e mal remunerado.

O filme narra cronologicamente os períodos definidos por Michelle Alexander (2017, p. 62-83), uma das entrevistadas no documentário, como o “nascimento da escravidão”, “a morte da escravidão”, “o nascimento do Jim Crow”, “a morte do “Jim Crow” e “o nascimento do encarceramento em massa”. E, segundo Angela Davis (2019, p. 12), outra entrevistada, “os negros deixaram de ser escravos, mas imediatamente se tornaram criminosos – e, como criminosos, tornaram-se escravos do Estado.”

Enquanto escravo, o negro era considerado objeto, propriedade do seu Senhor, um “alienado da sua essência humana” (MOURA, 2019, p. 261-268) que não dispunha de liberdade e da posse do seu próprio corpo. A engrenagem do sistema escravocrata sustentou-se sobre a desumanização dos escravos, situação que aparentemente seria modificada com o fim da escravidão.

De acordo com Ifeoma Ajunwa (2020, p. 2), a Proclamação da Emancipação em 1863, na qual Abraham Lincoln decretou o fim da escravidão, apenas transmutou uma condição de jure em uma situação de facto. A ratificação do fim da escravidão nos Estados Unidos ocorreu com a promulgação da 13ª Emenda a qual pôs fim à escravidão entre particulares mas permitiu o trabalho forçado como punição por crime pelo qual foi condenado para o Estado. A Suprema Corte da Virginia convalidou o entendimento em Ruffin v. Commonwealth, afirmando que o condenado por um crime perde sua liberdade e direitos pessoais, tornando-se escravo do Estado (AJUNWA, 2020, p. 3).

A “morte da escravidão”, portanto, ocorreu parcialmente nos Estados Unidos. A 13ª Emenda perpetuou o sistema escravocrata, porém com a justificativa de ser somente uma punição de um crime. O documentário revela, entretanto, como se construíram regras e narrativas para que se criminalizassem condutas realizadas por negros e como se arquitetaram estereótipos que os caracterizavam como foras da lei, de modo que estes continuassem a ser os escravos dentro do novo sistema institucionalizado pela 13ª Emenda.

A vadiagem é um exemplo em que não trabalhar tornou-se um crime e, segundo Michelle Alexander, algumas destas leis dos estados do Sul eram aplicadas seletivamente aos negros, a ponto de que, em uma destas resoluções, exigia-se que “todos os pretos e pardos acima de dezoito anos” deveriam obter, no início de cada ano, uma prova escrita de que tinham um emprego (2017, p. 69)”. O receio de que a branquitude perdesse seus privilégios levou à criação de um sistema que criminalizasse o negro pelo “delito de ser negro[2]” (ALEXANDER, 2017, p. 13).

É relevante destacar como uma política pública segregacionista elevou o trabalho a bem jurídico a ser protegido pela lei penal, tipificando como crime a conduta de quem não exercesse atividade laborativa. No Brasil, a vadiagem foi criminalizada pelo art. 59 da Lei de Contravenções Penais, Decreto-Lei nº 3.668. Todavia, como relata Átila da Rold Roesler (2016), as Ordenações Filipinas, o Código Criminal do Império de 1830 e o Código Penal de 1890 já previam a vadiagem como ilícito penal. No entanto, no último regramento, a criação de um capítulo cujo título era “Dos Vadios e da Capoeira”, criminalizando-se a vadiagem e os praticantes de capoeira, e outro com título de “Dos Mendigos e Ébrios” demonstrou-se uma “prática odiosa de higienização social” que perseguia os menos favorecidos que, em tais períodos, eram predominantemente negros.

Segundo Angela Davis (2019, p. 25), a vida dos afrodescendentes nos Estados Unidos é marcada pela escravidão, linchamento e segregação. As leis Jim Crow e Códigos Negros que estiveram em vigor nos EUA foram instrumentos legais que impediram que os negros, na condição da trabalhadores livres, pudessem efetivamente usufruir dos mesmos direitos básicos dos brancos e acesso ao mercado de trabalho que lhes permitissem se inserir na sociedade de classe norte-americana.

O que se verifica ao longo do documentário é o retrato de um país que, na aparência, apresenta reformas que respeitam as limitações impostas pela lei de cada período, mantendo todavia, na prática, privilégios para pessoas brancas, não alterando a condição do afrodescendente como “casta racial subordinada” (ALEXANDER, 2017, p. 60-61).

A lei de direitos civis de 1964 põe fim às leis Jim Crow, abolindo discriminações com base na raça, cor, religião, sexo e nacionalidade, sendo instrumento legal relevante no combate à discriminação na esfera trabalhista. Entretanto, a evolução legislativa não é suficiente a superar o racismo estrutural na sociedade, substituindo-se o racismo Jim Crow no qual os negros eram vistos como raça inferior pelo “novo racismo”, institucionalizado, aparentemente não racial, em que se utilizam de argumentos de meritocracia e características culturais de cada raça ou minoria para isentar os brancos pela condição social das pessoas de cor (BONILLA-SILVA, 2020, p. 22-23).

Para Ifeoma Ajunwa (2020, p. 10), os algoritmos utilizados nos dias de hoje para a contratação automatizada de mão de obra podem ser considerados uma “forma moderna de Jim Crow”. A autora nigeriana exemplifica que ferramentas como a do Facebook de “Grupo de Afinidades” auxilia na divulgação de ofertas de emprego para grupos raciais determinados, divulgando-se cargos de alta renda ao publico masculino branco em detrimento das mulheres e minorias raciais.

O documentário revela ainda dado assustador quanto ao encarceramento nos Estados Unidos. De acordo com o longa-metragem, 25%. é a porcentagem da população carcerária mundial que se concentra apenas nos Estados Unidos, destoando dos 5% da porcentagem da população mundial que habita o país. Esse número é um dos primeiros dados sobre o sistema prisional dos EUA que são desvelados no início do filme: são 2,3 milhões de pessoas presas nos Estados Unidos em 2016, a maior taxa de encarceramento do mundo. Esses números revelam matematicamente a política de encarceramento em massa promovida pela Land of Freedom.

A partir de dados tanto estatísticos quanto históricos e políticos, o documentário procura explicar ao espectador o passo a passo da construção da política de encarceramento em massa nos EUA e quais foram – e são até hoje – seus objetivos. Ava DuVerney procura revelar que a política criminal dos EUA é na verdade um movimento consciente e voluntário para que o trabalho escravo abolido em 1863 possa continuar existindo, mascarado de “punição ao crime”, uma vez que a 13ª Emenda permite até hoje o trabalho forçado dentro dos presídios estadunidenses. Como defende Ifeoma (2020, p. 2), o fim da escravatura não levou ao fim da exploração do trabalho dos descendentes de escravos afro-americanos.

Dito isso, o documentário inicia sua análise com o lançamento do filme Birth of the Nation. Essa superprodução de 1915 conta a história da Guerra Civil dos EUA e reconfigura a imagem do negro: o personagem negro do filme é exposto como alguém naturalmente violento, que persegue mulheres brancas e tenta violar seus corpos a todo custo. De acordo com o documentário, diversos atentados a comunidades negras ocorreram nos anos seguintes ao lançamento do filme, sob a ideia de que eles representavam um perigo ao restante da população.

Em seguida, um plano político de criminalização institucional das minorias raciais foi ampliado na sociedade estadunidense. Em 1970, em meio aos protestos e reivindicações do movimento civil pela igualdade liderado por Martin Luther King Jr., o presidente Richard Nixon promoveu a campanha Law and Order, criminalizando as manifestações ao acusá-las de “perturbação da ordem” e “descumprimento da lei”. A ideia era de que a lei deveria ser fortificada e fortemente fiscalizada para que a ordem no país fosse mantida, justificando uma abordagem policial violenta frente às manifestações do povo negro. Nessa época, houve o primeiro grande encarceramento das minorias raciais nos Estados Unidos.

O documentário mostra que Nixon não parou por aí. Ele também foi o responsável por cunhar o termo “guerra às drogas”, com a campanha “preventiva” Just say no promovida pela sua esposa, e que foi amplamente recebida pela sociedade estadunidense. Contudo, foi apenas com Reagan, em 1982, que a guerra às drogas foi oficialmente declarada, a partir, principalmente, da criminalização do crack. Este é um importante ponto que a diretora do filme revela-nos a intensa criminalização do crack frente a outras drogas e sua instituição como inimigo interno do Estado fez com que a grande e violenta ação policial dentro das comunidades de minorias raciais fosse justificada completamente. Isso pois o crack era uma droga muito mais difundida no subúrbio, entre a população negra, do que a cocaína, que era mais utilizadas por classes privilegiadas da sociedade.

Ava DuVernay agora se volta para o ano de 1994, com a instituição do Minimum Mandatory e do Three strikes and you’re out pelo presidente Bill Clinton. Essas foram duas medidas legislativas que contribuíram para o encarceramento das minorias raciais. A primeira era uma sentença que os juízes eram obrigados a aplicar caso fossem constatadas certas condições do crime. Dessa forma, não era permitido ao juiz analisar as condições materiais em que o suposto ato ocorreu, mas sim aplicar diretamente essa “sentença mínima”. Já o Three strikes and you’re out era uma rigorosa medida penal da Califórnia que determinava que, independentemente da ilegalidade praticada, na terceira ocorrência o indivíduo deveria receber uma pena rigorosíssima, variando entre 25 anos de prisão à prisão perpétua.

Por fim, o documentário revela a política de perseguição às minorias perpetrada por Trump. Por datar de 2016, o filme retrata apenas a campanha eleitoral pautada na criminalização dos imigrantes pelo futuro presidente eleito e da sua pretensão de que a política do Law and Order voltasse a ser aplicada pelo governo dos EUA.

Não obstante, ao longo de sua análise política, o documentário revela diversos áudios e falas de membros do governo estadunidense admitindo que o endurecimento penal e a política de encarceramento dos EUA possuem raízes no seu sistema econômico, que lucra bilhões com os presídios americanos. O objetivo é preencher as cadeias com indivíduos de minorias raciais – negros e imigrantes – para que as empresas possam se aproveitar legalmente do trabalho forçado que essas populações realizam nos presídios. É uma “nova”, porém antiga, estratégia de fazer, a qualquer custo, a manutenção do trabalho escravo dessa população, a troco de bilhões de dólares e da liberdade de milhões de indivíduos. Ifeoma (2020, p. 4) argumenta que, principalmente entre as décadas de 1970 e 1990, houve “um cataclismo de leis punitivas” que permitiu a prisão de afro-americanos considerados excedentes na sociedade, dando espaço para que grandes empresas como Walmart, McDonald’s e Victoria’s Secret se aproveitassem da mão de obra dos presidiários para lucrarem ainda mais em seus negócios.

A perversidade dessa política é tamanha que, como mencionado anteriormente, sua amplitude vai além do sistema político e econômico. Propagandas, reportagens e programas de televisão propagavam a ideia de que o negro era naturalmente perigoso e deveria ser excluído da sociedade, encarcerado. Assim, o encarceramento em massa contava com o apoio da população e essa arma ideológica possuía efeitos até entre os próprios negros, que também começaram a acreditar no discurso de que eles são “superpredadores”, perigosos até para si mesmos, conforme o documentário demonstra a partir de suas entrevistas.

Dessa forma, negros, latinos, imigrantes e outras minorias raciais eram privadas do mercado de trabalho ou tinham sua entrada atrasada ao máximo, a fim de que suas oportunidades diminuíssem e eles permanecessem na ocupação de empregos precarizados. Essas políticas atingiram também seu grau de instrução, pois muitos tiveram o acesso à escola negado pois foram presos enquanto em idade escolar (AJUNWA, 2020, p. 4).

Segundo o World Prison Brief do PrisonStudies.org[3], o Brasil é o terceiro no ranking mundial com maior população carcerária, vindo atrás dos Estados Unidos e China, estando aquele em primeiro lugar. Ao contrário dos EUA, em que a população negra corresponde a cerca de 13% da população total[4], no Brasil, ela corresponde a 56,1% segundo a PNAD contínua do IBGE no ano de 2019 (AFONSO, 2019). E segundo Juliana Borges (2020, p. 19), “64% da população prisional é negra, enquanto que esse grupo compõe 53% da população brasileira. Em outras palavras, dois em cada três presos no Brasil são negros”.

Para Juliana Borges (2020, p. 57), “o Estado no Brasil é o que formula, corrobora e aplica um discurso e políticas de que os negros são indivíduos pelos quais deve se nutrir medo e, portanto, sujeitos à repressão.” Tal postura de Estado estimula práticas individuais, coletivas e institucionais racistas, contribuindo para a manutenção de uma sociedade racista marcada pela violência e extermínio do povo negro.

A pesquisadora esclarece que a experiência colonial de objetificação dos corpos negros foi substituída no período pós-abolicionista pela criação de estereótipos e discursos de medo e repulsa que mantiveram a “lógica de exclusão” dos negros, o que justifica a ausência de políticas públicas e oferta de empregos dignos à população afrodescendente (BORGES, 2020, p. 57).

Assim, apesar de haver também uma super-representação de negros nos presídios brasileiros, sua maioria não realiza trabalhos forçados como manutenção da escravatura, nos moldes de como é realizado nos Estados Unidos. Vale a pena destacar que a Convenção nº 29 da OIT apresenta proposições que visam coibir o trabalho forçado e obrigatório, constando, no art. 2, 2, c), a possibilidade de trabalho prisional excepcional nos seguintes termos:

“2. Entretanto, a expressão ‘trabalho forçado ou obrigatório’ não compreenderá, para os fins da presente convenção:
(…)
c) qualquer trabalho ou serviço exigido de um indivíduo como consequência de condenação pronunciada por decisão judiciária, contanto que esse trabalho ou serviço seja executado sob a fiscalização e o controle das autoridades públicas e que dito indivíduo não seja posto à disposição de particulares, companhias ou pessoas privadas;”

Os Estados Unidos não são signatários da referida Convenção, tendo o Brasil, no entanto, a aprovado e ratificado. O compromisso internacional do Brasil no enfrentamento do trabalho forçado manifesta-se pela Lei de Execução Penal nº 7.210 e na Constituição Federal de 1988, em que, no primeiro caso, é estipulada a finalidade educativa e produtiva do trabalho do preso, cuja remuneração é um direito e, no segundo caso, é direito fundamental a inexistência de pena de trabalho forçado, sendo o trabalho um direito social remunerado.

No Brasil, o trabalho prisional é, portanto, regulamentado pela Lei de Execução Penal que destaca um capítulo apenas para o labor no sistema penitenciário, distinguindo inclusive o trabalho interno daquele realizado externamente à penitenciária. O art. 28 da LEP conceitua o trabalho do condenado “como dever social e condição de dignidade humana, terá finalidade educativa e produtiva”. O art. 29 determina que a remuneração não pode ser inferior a ¾ do salário-mínimo, havendo ainda regra, no parágrafo segundo, que estipula que parte da remuneração será reservada para o momento em que o detento resgatar sua liberdade, demonstrando uma política pública que visa amparar a subsistência do egresso quando reinserido em sociedade (CEIA, 2020, p. 21).

A LEP exclui o trabalho obrigatório ao preso provisório, frisando, no art. 32, que “Na atribuição do trabalho deverão ser levadas em conta a habilitação, a condição pessoal e as necessidades futuras do preso, bem como as oportunidades oferecidas pelo mercado”. É previsto jornada de trabalho entre seis e oito horas diárias com descanso nos domingos e feriados, e possibilidade de execução de trabalho externo em serviço ou obra públicas realizadas pela Administração Direta ou Indireta ou entidade privada, desde que limitado a 10% o número de presos como empregados na obra. É também relevante a previsão do art. 36, §3º da LEP que exige a manifestação expressa de consentimento do detento para prestação de serviços à entidade privada (CEIA, 2020, p. 22-23).

Ifeoma (2020, p. 16) propõe diversas soluções para a diminuição da desigualdade ocupacional entre minorias raciais, baseadas em uma maior proteção legal e igualdade de direitos trabalhistas, ou seja, a partir de uma maior atuação estatal. Ela divide as ações necessárias em três áreas: (i) direito trabalhistas para trabalhadores prisionais; (ii) proteções trabalhistas para imigrantes e trabalhadores de aplicativo; e (iii) proteções trabalhistas mais fortes para todos os trabalhadores.

Para o primeiro tópico, a autora sugere a criação de leis que obriguem as empresas que utilizam a mão de obra dos trabalhadores prisionais a contratá-los após o cumprimento de suas penas. Ela defende que é extremamente injusto que esses trabalhadores não sejam empregados pelas corporações que lucraram e cresceram a partir de seu trabalho, devido à sua ficha de antecedentes criminais. Neste ponto, a autora também defende que devem ser feitos estudos aprofundados sobre o impacto que as fichas criminais possuem na inserção da população negra no mercado de trabalho (AJUNWA, 2020, p.16).

Já em relação ao segundo e terceiros tópicos, Ifeoma (2020, p. 17-18) defende que as leis trabalhistas nos EUA devem ser aplicadas não só aos nativos, mas também aos imigrantes, mesmo os que não possuem sua situação regularizada no país. Ela acredita que, ao fortalecer as leis para as minorias raciais, todos os cidadãos estadunidenses serão beneficiados com essa mudança, que melhorará o mercado de trabalho dos EUA. Por fim, ela defende que diversas soluções legislativas sejam criadas, quais sejam o estabelecimento de uma renda básica universal para aqueles que não conseguem se inserir no mercado de trabalho, uma garantia federal de emprego e a redução de horas de trabalho diárias, a fim de que sejam gerados mais postos de trabalho.

Quanto ao Brasil, Sueli Carneiro apresenta algumas propostas no combate à desigualdade racial no mercado de trabalho. A filósofa entende que emprego e trabalho são “condição primordial para a reprodução da vida, e sua exclusão é também a primeira forma de negação desse direito básico da cidadania” (CARNEIRO, 2011, p. 110). Portanto são necessárias políticas públicas de inclusão do negro no mercado de trabalho, seja por meio de políticas de ação afirmativas que estimulem a diversidade, capacitação e promoção do negro nas empresas, seja por meio de cotas raciais no sistema de ensino universitário (CARNEIRO, 2011, p. 115). A autora destaca ainda a relevância da atuação do Ministério Público do Trabalho na fiscalização, investigação e controle de práticas antidiscriminatórias por meio da instauração de inquéritos civis e ações civis públicas que visem assegurar a igualdade de acesso e manutenção de empregos aos negros no mercado de trabalho (CARNEIRO, 2011, p. 109-110).

Fato é que o Direito é muito importante na realização de reformas, mas ele, por si só, não é suficiente. A partir de uma reflexão atenta do documentário “A 13ª Emenda”, é possível perceber a simbiose entre Direito, Política e Economia. É fácil visualizar essa correlação quando percebemos que uma sociedade estruturalmente racista não consegue produzir leis que não carreguem traços ou até reforcem o racismo. O Direito, como ciência social, não é neutro e sofre influência dos interesses políticos e econômicos hegemônicos.

É importante ter em mente que não existem direitos sem lutas. Assim como Martin Luther King Jr. ensina, tanto no texto, quanto no documentário, os direitos sociais devem ser conquistados e essa conquista é uma luta permanente, que muitas vezes demanda um enfrentamento político em face do Estado e suas forças hegemônicas. Contudo, para concretizar essas lutas é necessário entender quem está por trás das políticas de perseguição ao trabalhador e às minorias raciais, que como o documentário revela, são muito bem pensadas, planejadas e estrategicamente executadas para assegurar a perpetuação de uma sociedade racialmente hierarquizada.

*Mestre do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGD/UFRJ). Membro de Grupo de Pesquisas TRAB21.

**Aluna de Graduação da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FND/UFRJ). Membro do Grupo de Pesquisas TRAB21.

[1] Ava DuVerney é a primeira diretora negra com US$ 100 milhões em bilheterias. Uol Universa. Disponível em:  https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2018/06/19/ava-duvernay-e-a-primeira-diretora-negra-com-100-milhoes-em-bilheterias.htm.. Acesso em: 23 dez. 2020.

[2] Ana Luiza Pinheiro Flauzina, na apresentação da obra de Michelle Alexander, reverencia a expressão “delito de ser negro” utilizada por Abdias Nascimento.

[3] Os dados da pesquisa encontram-se no site do Prisonstudies.org. Disponível em: https://www.prisonstudies.org/highest-to-lowest/prison-population-total?field_region_taxonomy_tid=All . Acesso em: 21 dez 2020.

[4] G1. Negros representam mais de 13% da população dos EUA e podem ser determinantes nas eleições. Jornal Nacional, 2020. Disponível em: <https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2020/10/29/negros-representam-mais-de-13percent-da-populacao-dos-eua-e-podem-ser-determinantes-nas-eleicoes.ghtml.>. Acesso em 19 dez. 2020.

BIBLIOGRAFIA:

AFONSO, Nathália. Dia da consciência negra: números expõem desigualdade racial no Brasil. Folha de São Paulo. Lupa. Rio de Janeiro, 20 nov 2019. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2019/11/20/consciencia-negra-numeros-brasil/#:~:text=56%2C10%25.,7%20milh%C3%B5es%20se%20declaram%20pardos. Acesso em 21 dez 2020.

ALEXANDER, Michelle. A nova segregação. Racismo e encarceramento em massa. São Paulo: Boitempo, 2017.

AJUNWA, Ifeoma. Race, Labor, and the Future of Work (August 10, 2020). Oxford Handbook of Race and Law, Eds. Emily Houh, Khiara Bridges, Devon Carbado, 2020, Available at SSRN: https://ssrn.com/abstract= or http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.3670785

BONILLA-SILVA, Eduardo. Racismo sem racistas: o racismo da cegueira de cor e a persistência da desigualdade na América. São Paulo: Perspectiva, 2020.

BORGES, Juliana. Encarceramento em massa. São Paulo: Sueli Carneiro; Editora Jandaíra, 2020. 144 p. (Feminismos Plurais/coordenação de Djamila Ribeiro).

CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2011.

CEIA, Matheus da Silva. O trabalho prisional e a marginalização de direitos como óbice intransponível à ressocialização: uma análise no âmbito do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2020. 77 f. Monografia. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Faculdade Nacional de Direito. Bacharel em Direito.

DAVIS, Angela. A democracia da abolição. Para além do império, das prisões e da tortura. Rio de janeiro: Difel, 2019.

MOURA, Clóvis.  Sociologia do negro brasileiro. São Paulo: Perspectiva, 2019.

ROESLER, Átila da Rold. Sobre a vadiagem e o preconceito nosso de cada dia. Justificando. 09 ago 2016. Disponível em: http://www.justificando.com/2016/08/09/sobre-a-vadiagem-e-o-preconceito-nosso-de-cada-dia/. Acesso em: 16 dez 2020.



Episódio novo do cine trabalho: valdete severo conversa sobre “que horas ela volta?” (BRASIL, 2015)

Valdete Severo, professora da UFRGS e Juíza do Trabalho,  é a convidada desta semana do podcast Cine Trabalho. Ela conversa com Rodrigo Carelli sobre o filme “Que horas ela volta?” (Brasil, 2015), um filme essencial para se entender o Brasil atual.

O papo rolou solto sobre racismo, machismo, assédio sexual, heranças do escravismo, direitos das domésticas, a ascensão dos subalternos, o ressentimento da classe média brasileira e muito mais.

Você pode conferir o episódio no Spotify:

No Apple Podcasts:

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Você também pode ouvir no YouTube:

*Fiquem atentos, o Cine Trabalho agora é semanal!*

AFINAL, QUAL LIBERDADE A ILHA DAS ROSAS E AS PLATAFORMAS DIGITAIS PRETENDEM? RESENHA DO FILME “A INCRÍVEL HISTÓRIA DA ILHA DAS ROSAS” (ITÁLIA, 2020) POR RODRIGO CARELLI

A “Incrível História da Ilha das Rosas” (Itália, 2020) foi uma das atrações da Netflix para o final do ano de 2020. O filme, que já se anuncia de pronto como uma história baseada em fatos reais, mostra a intrépida aventura de Giorgio Rosa, um idealista que resolve construir, na segunda metade da década de 1960, um país autônomo, onde se pudesse exercer plenamente a liberdade. Para isso, como engenheiro, inventa uma forma de montar uma plataforma de quatrocentos metros quadrados em pleno Mar Adriático, fora das 6 milhas de águas territoriais da Itália. Conta para isso com a sua astúcia e as suas próprias mãos, além da ajuda de amigo, filho do dono de um estaleiro, que será seu sócio e componente do governo da nova nação, a Ilha das Rosas.

Após construí-la, o primeiro passo foi montar o governo (distribuindo os cargos entre os amigos), criar selos e uma moeda, além de instituir o Esperanto como língua oficial. A novidade fez com que a ilha tivesse a visita de vários turistas e levou ao recebimento de vários pedidos de cidadania. A Itália não ficou satisfeita com este novo Estado ao lado de sua costa e decidiu pôr fim ao empreendimento. Giorgio tentou se socorrer até ao Conselho da Europa para manter em pé seu sonho, sem êxito, sendo a plataforma destruída de modo épico, em confronto aberto entre os libertários de mãos nuas e peito aberto contra a poderosa armada italiana. Ao terminar o filme, dá vontade de nos empolgarmos a sermos também ávidos defensores da liberdade!

Ah, a liberdade… Na película, o tempo inteiro se fala de liberdade, sem, no entanto, explicar o que isso realmente significa. Os personagens, aliás, discutem isso em algumas cenas, em que são debatidos se algumas atividades, como o jogo de cartas, seriam incluídas na ilha. Em momentos parecia que ninguém sabia muito bem o que era aquilo que pretendiam ali.

Bom, essa é a história contada no filme, o que não corresponde exatamente aos fatos. A Ilha das Rosas foi empreendimento comercial de uma empresa, constituída por Giorgio Rosa com sua esposa Gabriella, e que contava com investidores estrangeiros, como um suíço de fama controversa e um inglês. A ideia de início era somente comercial, Giorgio admitiu, para aproveitar o turismo em Rimini, praia italiana movimentada da Emilia-Romagna, mas que, depois de várias exigências burocráticas governamentais para a instalação de seu empreendimento, ele se rebelou e jurou a liberdade: “Ah, sim? Então agora vou fazer um Estado para mim!” Fica assim mais claro o que significa a liberdade que tanto queria. Em outra entrevista, Giorgio afirmou que, para fugir do fato de que não podia fazer nada que os políticos e os padres não queriam, e, sendo amante da liberdade, a única solução seria se mudar para um país independente, “onde os inteligentes pudessem comandar e os idiotas servirem”, mas que por duas razões não fez isso: que todos os estados eram entrincheirados entre religiões e que não gostaria de se afastar de sua pátria, da sua cidade e da sua família. Então pensou que a solução seria fazer sua própria ilha onde existiria “a verdadeira liberdade, onde pessoas inteligentes poderiam prosperar e os ineptos seriam expulsos”. Agora sim podemos entender plenamente o conceito de liberdade que levou à criação da Ilha das Rosas.

Giorgio não morava na plataforma, e sim em terra firma, em Bolonha, a 117 quilômetros do mar de Rimini. A ilha era somente habitada por Pietro Bernardino, o vigia, que depois teve a companhia de um casal curioso. Os selos nunca foram usados de verdade, serviam somente para a venda a colecionadores e turistas. Ninguém falava Esperanto, nem mesmo Giorgio, que recorreu a um padre para traduzir a Constituição do Estado da Ilha das Rosas. A ilha foi construída não pelas mãoes de Giorgio, mas sim por trabalhadores braçais que realizaram o trabalho em condições climáticas terríveis. E, conforme depoimento de um trabalhador que construiu a plataforma, Giorgio não ficava muito feliz na hora de pagá-los. Na comédia da Netflix, esta faceta fica escondida por detrás da figura cômica de seu sócio (que não existiu na realidade, um estaleiro foi contratado), que falava que iria arregimentar migrantes da pobre região da Calábria e não iria pagá-los para fazer o trabalho de construção da plataforma. Giorgio sempre tratou a ilha como um negócio, uma propriedade, e nada mais. Um negócio que pretendia estar fora do alcance das leis de seu país e que as normas seriam por ele mesmo criadas e impostas. Assim, o sonho não era de construir uma nação livre, mas sim um negócio livre. Trata-se da confusão comum entre propriedade e soberania.

Na mesma época da Ilha das Rosas, foi iniciada uma experiência semelhante: a Sealand. Paddy Roy Bates, ex-militar britânico, ocupou uma plataforma abandonada por seu país, instituiu ali uma nação e declarou-se rei. Posteriormente criou o lema desse país sem povo: “E Mare, Libertas”, ou “no mar, a liberdade”. Em princípio utilizou a plataforma como uma estação de rádio pirata para o público inglês. Sealand passou a vender cidadanias e seu passaporte foi utilizado por vários criminosos, desde traficantes de armas russos, passando por vendedores de haxixe marroquinos e até pelo assassino do costureiro Gianni Versace. Atualmente o negócio do país é vender títulos nobiliárquicos (por 29,90 libras você poder se tornar um lorde, lady, barão ou baronesa), além de, talvez, sua maior jogada: tornar-se um hospedeiro de servidores de dados, que seria o equivalente informacional a um paraíso fiscal, abrigando sites de jogos, esquemas de pirâmide, pornografia infantil e cibersabotagem empresarial. Da mesma forma que na Ilha das Rosas, seu rei não habita a nação da liberdade. Em verdade, não há habitantes permanentes ali, só empregados transitórios para realizar os serviços necessários de manutenção.

Aqui nos aproximamos então ao outro objeto deste texto: as plataformas digitais. Muitas características unem esses dois casos com o cenário das plataformas digitais. A primeira delas é a utilização da ideia da plataforma como desculpa para a fuga das leis. Desde a Declaração de Independência do Ciberespaço realizada sugestivamente em Davos, Suíça, de forma unilateral por John Perry Barlow em 1996, o espírito que move as empresas do Vale do Silício é o descrito por  Lawrence Lessig: o Código (da Internet) é a Lei. Ou seja, a intenção é a busca da liberdade por meio da transformação do algoritmo na lei e, assim,  a negação das normas instituídas pelo governo. A regulação estatal ameaça a liberdade, diz Lessig. A única regulação possível na era da Internet é aquela dos codificadores.

É com base nesse espírito de “liberdade” que se constituem as plataformas digitais, que afirmam pertencerem ao mundo das ideias e dos dígitos e assim negam as soberanias estatais. Seriam entes supra ou extranacionais e supra ou extra-estatais, portanto. Livres do jugo governamental e, assim, de políticos e políticas que impedem a liberdade e a inovação, poderiam então prosperar.

Com esse espírito passam a entrar em todos os países desafiando as leis locais, que são tidas como inapropriadas para regular o ciberespaço e suas empresas imateriais. Invadem mercados e questionam suas regras.  Desafiam a tributação, pois não pertencem ao espaço físico dos países em que atuam. Desejam nada mais e simplesmente a liberdade.

As ideias, no entanto, tal qual em Ilha das Rosas e em Sealand, não correspondem aos fatos. Ninguém habita o ciberespaço, que é um não-lugar.  Nenhuma atividade humana é realizada no ciberespaço, e sim por meio dele, em pontas sempre conectadas a um ponto físico no mundo real. É ali que as transações são efetivamente realizadas e completadas. Suas atividades econômicas têm efeito no mundo real e não em um espaço fictício. A imaterialidade das plataformas digitais pertence a um imaginário, e só sonhadores, desavisados ou espertalhões acreditam nisso. A Uber, por exemplo, não seria nada se não alugasse a infraestrutura física da Amazon para montar sua base de dados, a partir da qual coordena as operações no mundo físico em várias cidades do mundo, apoiando-se inclusive em aluguel de espaços em shoppings centers e aeroportos para seus clientes. O serviço prestado pela Uber não está em um espaço cibernético imaterial, mas sim é realizado diuturnamente nas cidades ao redor do mundo, e para isso realiza todo tipo de atividade necessária: desde lobbies, passando por defesas jurídicas e chegando a atendimento ao público e controle de trabalhadores. A pretensão dos seus clientes não é a utilização de um serviço cibernético, mas sim se locomover ou que comida chegue à sua porta. Assim, também as plataformas digitais tentam se sustentar em uma forçaçâo de barra.

O outro ponto em que todas essas plataformas, tanto as físicas quanto as digitais, tentam se apoiar e não tem consistência nenhuma é a defesa da liberdade.

Liberdade é uma noção tão potente quanto fluida de sentido. Quem não deseja a liberdade? Quem se opõe à liberdade? O que é liberdade? Quem é livre? Livre de quê? Livre do quê? Livre para quê?

Em uma sociedade a liberdade não é encontrada, ela é instituída, como nos mostra Muriel Fabre-Magnan. Em uma sociedade sem regras coletivamente instituídas não há liberdade, e sim barbárie. Liberdade, ao contrário do que dizem os plataformistas, não é poder fazer o que se quer, mas sim que alguém não seja impedido de fazer o que não for proibido. Um mundo mais livre não é um mundo sem leis, mas, ao contrário, aquele com normas que protejam adequadamente as liberdades. Uma sociedade democrática é tida como livre não porque não haja interditos, mas sim porque as proibições são instituídas a partir de regras estatuídas coletivamente, garantindo a liberdade. É o interdito, a proibição, que instituí a liberdade. Uma pessoa é livre não porque pode matar quem ela quiser, mas sim porque não é permitido que a matem.

Tomemos o exemplo da liberdade religiosa. Eu só tenho liberdade religiosa se houver a garantia que ninguém – um Estado ou qualquer pessoa – me imponha uma religião ou os seus valores religiosos. Minha liberdade está fundada na proibição de imposição do pensamento religioso. O proselitismo, ao contrário de ser um ato de liberdade, é um ato atentatório à liberdade religiosa. A inexistência de freios para que religiosos assumam postos governamentais e legislativos são atos que atentam contra a liberdade religiosa, pois possibilitam a imposição de crenças por meio das leis e de atos de governo.

Outro exemplo: a Covid-19. Alguns movimentos se baseiam no discurso da liberdade para negarem ter que cumprir o distanciamento social, fechar temporariamente negócios, usar máscaras e tomar vacinas. A Nova Zelândia está praticamente livre do vírus desde junho de 2020. Não há necessidade de distanciamento social, não se usa máscaras e estádios de rúgbi e arenas de rock estão lotadas. O Natal e o Ano Novo foram realizados com a aglomeração que as pessoas desejassem. A liberdade, enfim, foi alcançada. Como isso se deu? O governo neozelandês atuou fortemente, isolando o país, seguindo todas – todas – as recomendações científicas, fechando (de verdade) todas as atividades econômicas não-essenciais, testando em massa e verificando as pessoas que tiveram contato com os casos positivos. Houve séria restrição de direitos civis e econômicos durante este período, estatuída coletivamente, mas hoje, os negócios prosperam e as pessoas vivem a vida  como antes da pandemia. Qual sociedade é mais livre: a que aceitou as duras restrições ou a que usa o lema da liberdade para não aceitar as medidas de proteção durante a pandemia?

Os libertários desejam tudo, menos liberdade; são em verdade autoritários que desejam potestade. Confundem liberdade com arbítrio. Buscam soberania sob o pretexto de atingir autonomia. Procuram a barbárie, a imposição de sua vontade sobre os demais.

Uma das frases citadas de Giorgio Rosa mostra muito bem a natureza do desejo libertário: a sociedade desejada é aquela em que pode garantir a prosperidade e o comando dos “inteligentes”, a servidão dos “idiotas” e a expulsão de “ineptos”, na qual um negócio pode ser realizado livremente de imposições ambientais, de segurança e trabalhistas. Giorgio não gostava de pagar corretamente seus trabalhadores: as plataformas digitais também não. Enquanto no filme, Giorgio contratava migrantes calabreses que afinal não eram pagos, as plataformas digitais contratam trabalhadores na forma de subemprego, muitas vezes com pagamento de valores ínfimos e havendo casos em que permitem a sonegação de pagamento por trabalhos realizados.

A liberdade que desejam é de serem livres para imporem sua própria vontade sobre os demais. Isso não é liberdade, isso é o que se vê na selva – e não estamos nos referindo aos humanos que lá vivem.

***

Para aprofundar nos estudos sobre a liberdade, recomendo a leitura do seguinte livro:

FABRE-MAGNAN, Muriel. L’institution de la liberte. Paris: PUF, 2018.

Por Rodrigo de Lacerda Carelli