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RESENHA DO FILME “O PREÇO DO AMANHÃ/ IN TIME” (ESTADOS UNIDOS/2011): ANÁLISE SOBRE O CONTROLE DA VIDA A PARTIR DE UMA PERSPECTIVA DISTÓPICA DE UMA SOCIEDADE DE CONTROLE

We live in capitalism. Its power seems inescapable – but then, so did the divine right of kings. Any human power can be resisted and changed by human beings. Resistance and change often begin in art. Very often in our art, the art of words.

Eneida Maria dos Santos*

Flora Oliveira **

ATENÇÃO: CONTÉM SPOILERS!

O filme “O preço do amanhã” (In Time) é uma ficção científica distópica com roteiro de Andrew Niccol que conta com o casal de protagonistas Justin Timberlake (Will Salas) e Amanda Seyfried (Sylvia Weis). O roteirista é autor de outras obras do mesmo gênero, como os mundialmente conhecidos “Gattaca”, “O show de Truman” e “Simone”.

A obra narra a vida e sina de uma sociedade dividida em zonas, havendo várias divisões de cenas voltadas para as zonas do gueto e de New Greenwich. A primeira cena do filme mostra o despertar de uma família que reside no gueto, em que Will Salas planeja trabalhar mais horas naquele dia para conseguir ofertar à sua mãe um presente de aniversário.

A dualidade trabalho e inflação é protagonizada no filme, a exemplo deste mesmo personagem que buscou trabalhar mais horas para presentear sua mãe, mas que não recebeu o “tempo” correspondente, sob a justificativa de que o valor da cota havia subido em razão da inflação.

Embora seja uma realidade comum a todos os trabalhadores precários do mundo, o filme inova ao literalmente transformar o dinheiro em unidades de tempo, levando ao limite a expressão “tempo é dinheiro”. O filme mostra cenas de pessoas mortas nas ruas do gueto simplesmente porque não conseguiram mais “tempo de vida” em face das regras de inflação e trabalho impostas por quem controla esse relógio.

A essa altura, o/a leitor/a já consegue identificar qual parte da sociedade controla a outra. A outra zona é marcada pela frase nada empática: “Para que uns sejam imortais, muitos precisam morrer.” É esta a narrativa de New Greenwich, demarcado por pessoas tranquilas, que andam e comem lentamente, que possuem policiamento próprio, pois este atua no controle da desigualdade social, mantendo seguros e livres do roubo de tempo os cidadãos que habitam nesta região.

Para movimentar o filme, repleto de cenas de aventura e perseguição, o protagonista Will Salas, após receber uma doação de mais de cem anos de Henry Hamilton, acaba ascendendo à zona de New Greenwich e, ao perceber o porquê os moradores do gueto vivem a ponto de morrer, inicia uma jornada de super-herói, ao objetivar devolver o tempo e, por certo, a vida aos que mantêm New Greenwich tão próspera.

O filme leva à reflexão sobre a relação entre poder, controle, vigilância e a existência de instituições que se responsabilizam pela manutenção da “ordem” previamente estabelecida pelos grupos dominantes, a fim de assegurar a perpetuação do poder nas mãos de poucos às custas da vulnerabilidade de outros.

A categorização de pessoas, visando classificar quem é superior a quem, é estratégia ideológica do racismo, criando-se um “contínuo biológico a que se dirige o biopoder” (FOUCAULT, 2010, p. 214). Segundo Foucault (2010, p. 215), “a raça, o racismo, é a condição de aceitabilidade de tirar a vida numa sociedade de normalização”.

O biopoder seria uma nova técnica de poder, mais sofisticada que aquelas reproduzidas por meio da soberania e de uma sociedade de disciplina. Pela teoria da soberania, o direito de viver e de morrer pertencia ao poder soberano, submetendo-se a vida dos súditos à sua vontade. Já na teoria do poder disciplinar, o foco é o corpo individual, o qual deveria estar alinhado à produtividade, disciplina e alocação geográfica, mediante “um sistema de vigilância, de hierarquias, de inspeções, de escriturações, de relatórios” (FOUCAULT, 2010, p. 203), de modo a se obter o maior proveito possível.

Enquanto a sociedade de disciplina concentra-se no corpo do indivíduo, a do biopoder governa-se ao coletivo, à multiplicidade dos homens, “em direção não do homem-corpo, mas do homem-espécie” (FOUCAULT, 2010, p. 204). Assim, este biopoder vale-se de técnicas de controle de reprodução, natalidade, morbidade, estatística, deslocamento, previsões e dentre outras que o auxiliam a ter um poder total sobre a população que permite que se determine quem deve se fazer viver e quem deve se deixar morrer (FOUCAULT, 2010, p. 204-208).

No filme, retrata-se o cotidiano de residentes do gueto que se expõem constantemente a situações em que estão diante da morte porque não possuem tempo suficiente para continuar a viver. A sociedade foi arquitetada sob uma estrutura em que os que têm pouco tempo/dinheiro vivem em guetos, valendo-se do trabalho, doação e empréstimos para sobreviver, sendo predeterminados a deixarem morrer.

Segundo Achille Mbembe (2018, p. 50), a “santuarização do território” “tornou-se uma questão biopolítica”, na qual se enaltecem as fronteiras de modo a se demarcar quais territórios podem ser ocupados e por quem (MBEMBE, 2021, p. 78). No longa-metragem, fica nítido que morar e transitar em New Greenwich é um privilégio que não deve ser acessível a todos. Não é à toa que a polícia que controla o tempo tem como uma de suas responsabilidades manter a “segurança” daquele lugar sagrado cujas fronteiras são fortemente delimitadas e vigiadas pelas instituições, de modo a não sofrerem a ameaça daqueles rotulados como seus inimigos.

A construção de cidades inteligentes e a transformação da vida em uma era digital não são capazes de reduzir mecanismos de exclusão e exploração, porque aquelas foram desenhadas por um regime capitalista de modelo patriarcal, heteronormativo de supremacia branca que reproduz práticas de desigualdade por meio de dispositivos tecnológicos (SADOWSKI, 2020, p. 50-51).

É importante ainda destacar que o filme retrata a realidade econômica na qual o sistema financeiro tem um papel regulador e de manutenção do status quo. Na obra cinematográfica, é estampada a realidade daqueles que não têm tempo para continuar a viver e buscam ajuda nos bancos, para que lhes forneçam empréstimo, garantindo ao menos mais um dia de vida.

Na obra a taxa de juros aumenta à medida que se passa a ter mais dinheiro circulante entre aqueles que residem no gueto. Isto foi possível graças às doações realizadas por Will Sallas e Sylvia Weis, ao se apossarem de montantes capturados do banco do seu pai. Majorando-se a taxa de juros e aumentando-se o preço dos serviços, reequilibra-se o mercado, diminuindo-se o tempo existente naquela região e entre aqueles que devem permanecer com pouco tempo em suas mãos. O sistema bancário funciona como auto regulador do mercado, garantindo a dinâmica de que os mais abastados continuem lucrando e os desprivilegiados tenham dificuldade de manter o mínimo para sobreviver.

Jathan Sadowski (2020, p. 167-172), ao refletir sobre os fins do capitalismo, sugere a readaptação dos aspectos de criação coletiva e individual a partir do uso das tecnologias, para que não sirva unicamente para a extração de valor, a exemplo do que ocorreu na Revolução industrial. E mais, que possamos reavaliar criticamente o modo como usamos a tecnologia para perceber o quanto ela nos transforma.

A ficção científica explora a distinção de classes e os aparatos sociais, políticos e econômicos existentes que gerenciam silenciosamente a sociedade de forma que o poder e o dinheiro permaneçam com aqueles que ditam as regras de regulação social. Demonstra-se no filme a política neoliberal que inclui os mais necessitados por meio da finança e que “mais que fornecer serviços, é preciso distribuir dinheiro” (LAZZARATO, 2019, p. 31), transformando os menos abastados em “homens endividados” (LAZZARATO, 2019, p. 28).

Ao ser indagado em uma cena do filme se “seria roubo roubar o que foi roubado”, o longa-metragem propõe uma reflexão sobre a sociedade de controle a que somos reféns, a ponto de não dominarmos nosso tempo/vida em troca dos dados que estão a comandar nossos atos voluntários e decisões mais importantes.

Conclui-se que o filme, embora com uma proposta distópica, aproxima-se bastante da sociedade desigual que marca o Brasil e o mundo e da influência do capitalismo digital em nossas decisões e anseios. A obra cinematográfica leva ao despertar de uma consciência crítica sobre a sociedade de vigilância estudada por Foucault e presente nas mais importantes decisões do Vale do Silício: primeiro controlar os dados para assim controlar as pessoas.

[1] Disponível em: https://www.theguardian.com/books/2014/nov/20/ursula-k-le-guin-national-book-awards-speech#:~:text=We%20live%20in%20capitalism%2C%20its,art%2C%20the%20art%20of%20words. Acesso em: 12 maio 2022.

* Mestre em Direito pelo Programa de Pós-Graduação da Faculdade Nacional de Direito da UFRJ. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa TRAB21. Procuradora Federal.

**Mestre em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco.Doutoranda no Programa de Pós-Graduação da Universidade Católica de Pernambuco, com doutorado Sanduíche na Universitat de València, Espanha.Professora Universitária. Advogada Trabalhista

REFERÊNCIAS:     

FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.

LAZZARATO, Maurizio. Fascismo ou revolução. O neoliberalismo em chave estratégica. São Paulo: n-1 edições, 2019.

MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. São Paulo: n-1 edições, 2018.

MBEMBE, Achille. Brutalismo. São Paulo: n-1 edições, 2021.

SADOWSKI, Jathan. How digital capitalism is extracting data, controlling our lives, and taking over the world. Massachusetts: MIT Press, 2020.

Plataforma digital de limpeza é considerada como empresa de trabalho temporário na Holanda e reconhecido o vínculo de emprego com os trabalhadores

Por Rodrigo Carelli

Saiu mais uma decisão importante na Justiça Holandesa no dia 21 de setembro de 2021: a Helpling, a maior plataforma digital de serviços de limpeza, presente em vários países do mundo, foi considerada como empresa de trabalho temporário pelo Tribunal de Apelação de Amsterdã.

O Tribunal entendeu que os trabalhadores de limpeza têm um relação contratual com a plataforma digital, muito embora não exerça controle sobre o trabalho realizado pelos faxineiros alocados em clientes. A corte entendeu que o controle é realizado pelas famílias que contratam a Helpling para fornecimento da mão de obra. Assim, para os magistrados, não se trata de um contrato de trabalho normal, mas sim de um contrato de trabalho temporário intermediado pela plataforma.

Entendeu a Corte: “É pacífico que a Helpling exerce uma atividade ou um negócio em que terceiros, neste caso trabalhadores em serviços de limpeza, são conectados a terceiros, no caso, famílias, para aí exercerem trabalho. Não importa se a Helpling faz isso como empresa de limpeza, como afirmam a entidade sindical et al., ou como plataforma tecnológica, como afirma a Helpling. O requisito de que o trabalhador seja disponibilizado para a família no contexto do exercício da profissão ou negócio de Helpling foi atendido.”

E continuou mais à frente: “Aplicado à situação atual, isso significa o seguinte. O trabalho é realizado pelo profissional de limpeza (no que diz respeito à limpeza em benefício da família, mas também financeiramente para o benefício de Helpling), é exercida subordinação sobre ele (em termos de supervisão e direção direta do agregado familiar, e em termos de autoridade formal da Helpling) e os salários são pagos. Os requisitos de ‘um contrato de trabalho’ são, portanto, satisfeitos. Existe um contrato de trabalho temporário se essas atividades (sempre) forem exercidas sob a gestão e supervisão do contratante. Esse é o caso aqui.” 

Interessante notar que no caso a remuneração é estipulada pelos trabalhadores e clientes.

Um detalhe importante é que no curso do processo, considerada ilegal a cobrança de percentual do trabalhador pela intermediação, a empresa passou a cobrar comissão somente do tomador da mão de obra. Também foi tida como ilegal multa de 500 euros prevista nos termos e condições de uso, a serem pagas pelos clientes, caso contratem diretamente com clientes após 24 meses do serviço realizado por intermédio da plataforma digital. Tal multa foi entendida como desarrazoada e, portanto, ilegal e prejudicial aos trabalhadores.

A ação foi mais uma ajuizada pela Federação dos Trabalhadores Holandeses, na esteira de outras já julgadas procedentes em relação a plataformas de entrega de comida e da Uber.

As cortes europeias continuam o cerco sobre as plataformas digitais: Tribunal na Holanda decide que todos os motoristas da Uber no país são empregados

Por Rodrigo Carelli

A Holanda considerou, por decisão do Tribunal Distrital de Amsterdã tomada neste dia 13 de setembro de 2021, que os motoristas da Uber que lhe prestam serviços pessoalmente são seus empregados. O acórdão se deu em ação coletiva ajuizada pela Federação Nacional de Trabalhadores da Holanda (Federatie Nederlandse Vakbeweging – FNV). A decisão ainda condenou a empresa a pagar danos materiais e morais à entidade sindical e aplicação da convenção coletiva da categoria.

A decisão é relevante não somente porque potencialmente atinge todos os motoristas da empresa naquele país, mas também pelo fato que expressamente afirma que a Uber realiza o que a Corte chamou de “subordinação moderna”.

Afirmaram os julgadores: “Na era tecnológica atual, o critério de “subordinação” tem sido interpretado de uma forma que se desvia do modelo clássico, de um modo de controle mais indireto (muitas vezes digital). Os empregados se tornaram mais independentes e realizam seu trabalho em momentos mais variados (auto-selecionados). Considera-se que na relação entre Uber e seus motoristas, existe esta “relação moderna de subordinação”.

Para entender dessa forma, a Corte argumentou que os motoristas só podem exercer suas atividades por meio do aplicativo da Uber, e que para isso devem aceitar as condições impostas pela empresa, que são inegociáveis e que a Uber também pode unilateralmente alterá-las. Também ressaltou a fixação de tarifas pela empresa e que as rotas, apesar de aparentemente livres, não o são porque os clientes não aceitarão uma rota diferente se isso levar a uma tarifa mais alta.

O tribunal entendeu que o aplicativo da Uber tem um efeito disciplinador, pois os trabalhadores são classificados e avaliados e que a avaliação afeta o acesso à plataforma e, portanto, às corridas. Uma classificação média baixa pode levar à remoção da plataforma e uma média alta pode alterar o status do trabalhador (platina ou diamante), proporcionando benefícios financeiros aos motoristas. Afirmou que, como reconhecido pela Uber em audiência, a empresa pode alterar as configurações e que isso pode mudar a fila de chamados, estando assim ausente a liberdade empreendedora dos motoristas que a empresa defende existir.

Os magistrados entenderam que embora a Uber enfatize que um motorista pode cancelar uma corrida, o cancelamento regular resulta na exclusão da plataforma e que a recusa por três vezes acarreta a desconexão temporária do trabalhador, ao exclusivo critério da empresa. O tribunal também ressalta que no caso de reclamações de clientes, é a Uber que decide de forma unilateral a solução da controvérsia, inclusive podendo fazer ajustes à tarifa acordada.

Assim, o algoritmo da Uber tem um incentivo financeiro e um efeito disciplinador e instrutório. “O fato de os motoristas serem, em certa medida, livres para recusar uma corrida, podem determinar seus próprios horários e podem usar simultaneamente diferentes aplicativos ou outros tipos de sistemas de reserva de viagens não altera isso. Assim que fazem uso do aplicativo Uber e estão conectados a ele, estão sujeitos à operação do algoritmo projetado por Uber, e, portanto, estão sob a “subordinação moderna” da Uber.

A lei holandesa impõe que há obrigatoriamente uma relação de emprego quando há a presença de três requisitos: trabalho pessoal, remuneração e subordinação.

Em relação ao primeiro requisito, a decisão afirma que não há dúvida que há uma prestação pessoal de trabalho dos motoristas para a Uber, pois estes transportam os passageiros para a empresa e que esta tem direito a uma porcentagem do preço da viagem. O tribunal entendeu que a Uber não é “meramente uma empresa de tecnologia que administra uma plataforma na qual os usuários podem entrar em contato uns com os outros e celebrar acordos entre si”, pois os motoristas devem concordar com as condições estabelecidas pela Uber e que os serviços de transporte formam o núcleo das atividades da Uber”. Os magistrados ressaltaram que “toda a organização da Uber está voltada para garantir que seja feito o maior número possível de viagens e que haja motoristas ativos em todos os dias e em todos os momentos para realizar as viagens para ela. Esse é o modelo de negócios da Uber”.

“A circunstância de que a relação com os motoristas é feita por Uber na forma de uma assinatura do aplicativo Uber e os motoristas pagam uma comissão de 25% do preço da viagem pelo uso desse aplicativo, não torna isso diferente. A questão é que os motoristas realmente realizam o transporte de pessoas oferecido por meio do aplicativo para a Uber.”

O tribunal afirmou ainda que “Além da questão de se aplicar o requisito de que o trabalho deve ser executado pessoalmente ou que a execução pessoal do trabalho deve ser considerada como um poder de direção e, portanto, como subordinação, percebe-se que Uber verifica explicitamente por meio de uma fotografia de si mesmo a ser tirada pelos motoristas se eles executam o trabalho pessoalmente. O fato de que a razão subjacente é a exigência legal de que um motorista deve ter as licenças acima mencionadas e que, portanto, um motorista não pode se permitir ser substituído não faz nenhuma diferença. É um fato estabelecido que um motorista realiza uma viagem que ele aceita pessoalmente.”

Em relação à remuneração, entendeu a decisão que a tarifa é recebida pela Uber, que faz as deduções e repassa o restante ao trabalhador, sendo caracterizada a remuneração, não tendo qualquer relevância o nome do pagamento.

Em conclusão, os magistrados entenderam que as partes acordaram somente “no papel” que os motoristas trabalhariam como autônomos. “Pode ser que (alguns) motoristas realmente tivessem a intenção de fazê-lo, mas em determinadas circunstâncias essa intenção deve ser colocada em perspectiva, já que terá sido motivada principalmente pelo desejo de trabalhar para Uber, a parte economicamente consideravelmente mais forte. Como discutido acima, a combinação do sistema criado por Uber leva ao fato de que o desempenho real tem todas as características de um contrato de trabalho. Nesse caso, a “essência” prevalece sobre a “aparência” e, sob a perspectiva da natureza obrigatória da legislação trabalhista e da proteção da posição mais fraca do trabalhador a redação escolhida no contrato deve ser analisada.” Em seguida afirmou que os contratos entre a Uber e os motoristas que pessoalmente se engajam perante a Uber devem ser qualificados como de contrato de trabalho.

O tribunal determinou a aplicação da Convenção Coletiva firmada pela Federação, mesmo que a Uber não tenha dela participado e condenou ainda a Uber a pagar à entidade sindical 50 mil euros, sendo 25 mil euros de danos materiais e 25 mil euros por danos morais, pois a Corte entendeu ser “indiscutível que a FNV sofreu danos à sua reputação e perda de poder de recrutamento como resultado do não cumprimento do Acordo Coletivo por parte de Uber.”

A decisão pode ser recorrida, mas é aplicável de imediato até que sobrevenha decisão em sentido contrário.

Essa não é a primeira decisão coletiva na Holanda. Em fevereiro deste ano, no Tribunal Recursal de Amsterdã, foi reconhecido, em ação do mesmo sindicato, o vínculo empregatício de entregadores da Deliveroo.

Esta decisão também vai ao encontro das decisões das cortes superiores da Espanha, França e Alemanha, bem como de decisões de última instância na Suíça, todas entendendo pelo vínculo de emprego de trabalhadores em plataformas digitais pela utilização da subordinação contida no algoritmo dessas empresas.

Para a leitura da decisão completa, você pode encontrá-la aqui.

I Congresso Internacional Lusófono de Inteligência Artificial, Filosofia e Direito – UFRJ

O Programa de Pós-Graduação Lógica e Metafísica da UFRJ (PPGLM) realizará I Congresso Internacional Lusófono de Inteligência Artificial, Filosofia e Direito, que ocorrerá toda segunda-feira, a partir da data de hoje, 23 de agosto de 2021, às 15h (GMT -3).

Para participar, basta acessar o Canal do Youtube do PPGLM/UFRJ no link https://www.youtube.com/ppglmufrj

Segue abaixo a programação completa:

23/08 – Algoritmos, Fake News e a Democracia Representativa Brasileira
30/08 – A uberização do trabalho na economia de Plataforma
06/09 – A governamentalidade algorítimica e a Cibercultura
13/09 – Direitos de Personalidade e Inteligência Artificial
20/09 – A Inteligência Artificial no RGPD europeu e na LGPD brasileira
27/09 – Regulamentação do trabalho nas plataformas digitais
04/10 – Economia política de dados e a Governamentalidade Algorítmica Neoliberal
18/10 – Ética, Inteligência Artificial e Resistências
25/10  – Inteligências Artificiais, Trabalho e Subjetividades
01/11 – Inteligência Artificial, Democratização dos Códigos e a Transparência Algorítmica

Confira a seguir o tema e palestrantes de hoje!

RESENHA DO FILME “A NOSSA ESPERA” (BÉLGICA/FRANÇA, 2018): REFLEXÕES SOBRE A EXAUSTÃO DA MULHER ESPOSA-MÃE-EMPREGADA – POR MAYSA SANTOS ANDRADE

ATENÇÃO: CONTÉM SPOILERS!

O filme “A Nossa Espera” -“Nos batailles”, ou “Nossas batalhas”, no original – (Bélgica/França, 2018) é uma obra realista e sensível, em que o diretor Guillaume Senez mostra as fragilidades do neoliberalismo patriarcal a partir de um ângulo inesperado. Em breves linhas, o longa apresenta as dificuldades enfrentadas por um homem muito engajado em seu trabalho remunerado e ausente para o zelo de sua família e casa, que de repente se vê responsável por todo o trabalho de cuidado no lar após o abandono de sua esposa, esgotada física e emocionalmente pelos encargos impostos e assumidos como mulher, mãe e empregada remunerada.

A trama, elogiada na Semana da Crítica do Festival de Cannes em 2018, traz como personagem principal Olivier, em uma atuação impressionante do ator Romain Duris. Olivier é um empregado sindicalizado, engajado com seu labor e com os(as) trabalhadores(as) do depósito onde atua. Neste ambiente, o filme retrata a frieza do tratamento oferecido pela empresa aos(às) empregados(as), com exigências cada vez mais rígidas e menos humanizadas – o uso do tablet como instrumento de controle, por exemplo, simboliza esta tendência, em uma possível referência às operações logísticas da Amazon.

No depósito, Olivier é um empregado dedicado e empático com os(as) colegas de trabalho, posicionando-se contra o fim dos seus contratos e tentando entender as motivações arbitrárias e fraudulentas usadas pela empresa para estas descontinuações contratuais. Os problemas nas relações de trabalho no local atormentam o personagem, que percebe na maioria dos trabalhadores o medo de engajar-se coletivamente em defesa de melhores condições, já que a resposta oferecida pela empresa é “se está ruim, a porta é logo ali”. Assim, o filme aborda também a agressividade das políticas neoliberais com seus contratos por tempo determinado, e os impactos destas instabilidades e precarizações no ambiente de trabalho.

Em casa, por outro lado, o personagem se mostra um pai disponível em raros momentos: somente no tempo que sobra após sua dedicação intensa às demandas da empresa e do sindicato. A personagem Laura, sua esposa e mãe de Elliot e Rose, é quem cuida de todos os afazeres do lar, além dos carinhos para os filhos e marido. No entanto, Laura realiza também um labor remunerado em uma loja de roupas, conciliando todos estes deveres nos mesmos períodos temporais em que Olivier se dedica quase que exclusivamente à ocupação remunerada. Além disso, ela se ocupa em esconder seus problemas de saúde do marido, preferindo mantê-lo despreocupado e confortável em casa.

A família funciona neste formato nos primeiros minutos do filme, que mostra os dias diferentes vividos pelos personagens: enquanto o marido exerce sua função remunerada e usufrui dos cuidados da esposa ao chegar em casa, Laura trabalha na loja, cuida da educação e saúde dos filhos, levando a consultas e às aulas, trata e culpabiliza-se por seus machucados e incômodos, lê histórias para que durmam, mantém a casa limpa e alimenta todos.

Ainda no início da trama, no entanto, a mulher vai embora. O longa passa, então, a apresentar as reflexões sobre as exaustivas jornadas femininas a partir da ausência da esposa e mãe. Deste momento do filme em diante, Olivier precisaria lidar também com as questões de saúde física, mental e emocional dos filhos; sua rotina escolar; as tarefas de casa etc. Com muita sutileza, são apresentadas então as suas dificuldades causadas pelos diferentes habitus masculinos[1]. Entre elas está o seu esforço para reprimir as emoções das crianças – e seus próprios sentimentos –, como a saudade que sentem de Laura, muito presente ao longo da narrativa.

No artigo A arte de ser Beija-Flor na tripla jornada de trabalho da mulher, as psicólogas e professoras Adriane Vieira e Graziele Amaral utilizam o marco teórico de Pierre Bourdieu na obra “A Dominação Masculina”[2] para explicar como se dá a biologização do social para consolidação da dominação patriarcal. No habitus de um gênero ou de outro estão os resultados – em pensamentos, expectativas e ações – das ideias de dominação culturalmente absorvidas pelos sujeitos. Assim, impregnam-se as atitudes e opiniões femininas e masculinas da representação da mulher como um ser frágil, encarregado dos cuidados e afetos; e, do homem, como forte provedor, um ser dominante.

Em diversas cenas, A Nossa Espera mostra como essa relação vertical é exaustiva para a mulher. Não apenas para a esposa Laura, mas também para a mãe e a irmã de Olivier, que logo são chamadas a prestar os trabalhos de cuidado quando estes se acumulam ao emprego do protagonista. Em mais de um momento, ele é chamado por estas mulheres a refletir sobre os impactos que essa divisão sexual do trabalho causou em sua esposa; sua própria mãe relata que, quando mais jovem, pensou diversas vezes em fugir, abandonando esse acúmulo de tarefas no cuidado do lar, crianças e marido.

Ele também ignora e retruca veementemente quando sua irmã tenta fazê-lo refletir sobre os padrões que repete de seu pai, questionando a sua ausência familiar e como isso afetou as suas vidas. Mesmo frente a esses confrontamentos, a princípio Olivier se mostra irredutível quanto às críticas e, pondo de lado a exaustão física e mental que vivia Laura, repete: “não se abandona a própria família”.

            O filme, riquíssimo nas nuances da construção do personagem, apresenta-nos um Olivier que por diversas vezes reproduz comportamentos típicos de uma agressividade masculina contra as mulheres[3]: em gritos com sua mãe, ofensas contra sua irmã, assédio contra a colega de trabalho. Por outro lado, vemos o protagonista começar a observar com cada vez mais cautela, ao longo das cenas, as desigualdades de gênero, a importância e a universalidade do afeto e do cuidado.

            A demissão de uma mulher grávida no depósito onde labora e o lugar secundário que resta a sua colega sindicalista são dois exemplos carregados de significado. No filme, uma empregada do local onde atua Olivier não tem o seu contrato renovado após o médico do trabalho vazar a informação de sua gravidez, lembrando-nos de como – apesar de necessitar dele para a sua continuidade – o capital segue menosprezando o trabalho do cuidado sempre que possível. De acordo com uma pesquisa da Fundação Getúlio Vargas realizada no ano de 2016, a empregabilidade das mulheres diminui consideravelmente após o fim da licença maternidade no Brasil[4].

            No caso de sua amiga do sindicato, o protagonista é convidado a ocupar uma posição estratégica em nome da instituição, enquanto sua colega com muito mais tempo de atuação sindical é colocada como segunda opção. Nesta cena, junto com Oliver, os espectadores são chamados a refletir também sobre os impactos da divisão sexual do trabalho no reconhecimento das trabalhadoras não só pelas empresas, mas também pelas instituições de representação coletiva[5]

            No artigo da professora e pesquisadora Romina Lerussi[6], estas desigualdades estruturais aparecem como um alerta epistemológico para o Direito, que pode ser resumido no seguinte esquema: (i) se o próprio Princípio Protetor é fruto do reconhecimento de uma desigualdade primária – a que existe entre empregado e empregador; (ii) e se assumimos criticamente a perspectiva masculina que a divisão do trabalho carrega desde o início; então é absolutamente necessário que as raízes do problema de gênero sejam apontados na criação de um Direito do Trabalho verdadeiramente preocupado com as equiparações sociais.

Como abordam Vieira e Amaral[7], quando o capitalismo passa a exigir o trabalho como um requisito para a dignificação do homem, para a mulher isto implica duas verdades: em primeiro lugar, é a cultura masculina que se toma como medida para este trabalho; em segundo, que a mulher, ainda assim, não será digna apenas pelo seu trabalho remunerado, pois o mundo continua pedindo a ela que cuide da casa, dos filhos, dos idosos e do marido. Assim, a presença da mulher no local de trabalho não a livra dos demais critérios para o seu reconhecimento social.

A exaustão de Laura no filme comentado nos leva a refletir por aspectos muito diversos. Por um lado, podemos pensar em como as relações precárias de trabalho (como os contratos por tempo determinado, questão presente no longa-metragem) afetam em maior grau as mulheres; no quanto a culpa pela casa e pelos filhos recai para a mãe e esposa, ainda que ela também carregue consigo o peso de um dia de trabalho remunerado, fora de seu lar; no tempo que sobra, neste cenário, para a sua mobilização coletiva.

Por outro lado, ao pensar em soluções, somos convidados(as) a imaginar um novo Direito do Trabalho que leve em conta estes problemas, que são tão estruturais quanto a própria expropriação do trabalho: sua divisão sexual e seu critério de medida e avaliação a partir do trabalhador (homem) industrial. Apesar da ilusão de neutralidade do ponto de vista, as diferenças de gênero persistem e ignorá-las torna o Princípio Protetor mais vazio para todas e todos. Nas palavras de Romina Lerussi, “insistir numa adaptação forçada ao modelo canónico de trabalho remunerado típico e insistir no pleno emprego em condições de feminização progressiva do trabalho (…) leva-nos precisamente à morte do direito do trabalho e ao abandono sem mais delongas de todas as pessoas trabalhadoras do mundo”[8].

MAYSA SANTOS DE ANDRADE É BACHAREL EM DIREITO E MESTRANDA NO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO. PESQUISADORA NO GRUPO DE PESQUISA TRAB21.


[1] VIEIRA, Adriane; AMARAL, Graziele Alves. A arte de ser Beija-Flor na tripla jornada de trabalho da mulher. Saúde e Sociedade [online]. 2013, v. 22, n. 2. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0104-12902013000200012. Acesso em 10 de junho de 2021.

[2] BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Tradução: Maria Helena. Kühner – 2a ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002 apud VIEIRA, Adriane; AMARAL, Graziele Alves. A arte de ser Beija-Flor na tripla jornada de trabalho da mulher. Saúde e Sociedade [online]. 2013, v. 22, n. 2. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0104-12902013000200012. Acesso em 10 de junho de 2021.

[3] Nas discussões quanto à dominação patriarcal a partir do conceito de habitus, Vieira e Amaral (2013) explicam o engendramento das ideias de força e virilidade ao sexo masculino, que justificam essas práticas sociais como naturais.

[4] Disponível em https://portal.fgv.br/think-tank/mulheres-perdem-trabalho-apos-terem-filhos. Acesso em 10 de junho de 2021.

[5] Sobre o tema, ver FERREIRA, Márcia Vieira et al. Abordagem das desigualdades de gênero e diversidade sexual em sindicatos de trabalhadoras/es em educação: o caso da confederação nacional dos trabalhadores em educação (cnte). Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, [S.L.], v. 99, n. 252.

[6] LERUSSI, Romina Carla. Orientaciones feministas para un nuevo derecho del trabajo / Feminist orientations for a new labor law. Revista Direito e Práxis, [S.l.], v. 11, n. 4, p. 2725-2742, dez. 2020. ISSN 2179-8966. Disponível em: <https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/article/view/50159&gt;. Acesso em: 14 jun. 2021.

[7] VIEIRA, Adriane; AMARAL, Graziele Alves, op. cit.

[8] LERUSSI, Romina. op. cit, p. 2737.

Torto Arado e o trabalho em plataformas digitais: as novas formas de velhas permanências da exploração colonial – artigo de rodrigo carelli

 O romance Torto Arado,[1] de Itamar Vieira Junior, vencedor de vários prêmios literários, vem alavancando cada vez mais leitores com uma história sobre um Brasil profundo (profundo em todas as suas acepções) em que a exploração de mão de obra antes escravizada continua a ser realizada por outros meios e formas. A população negra do campo, que em tese alcançou a liberdade completa em 1888, permanece por gerações a sofrer violências de todas as naturezas.

Esse Brasil profundo, em desenho geral e visto de forma ampla, tem seu paralelo nas grandes cidades, em que a população historicamente excluída e racializada permanece há tempos vivendo sob as mesmas condições de miséria e indignidade, ilustrada agora naquilo que se chama de trabalho em plataformas digitais. Esse paralelo pode ser bem representado não por uma obra de ficção inspirada na realidade, como em Torto Arado, mas por vídeos realizados em aparelhos celulares que ganharam a grande mídia após espalharem-se pelas redes sociais.

O último desses vídeos que se tornou viral apresenta um sócio de restaurante, não identificado pelo nome em nenhuma reportagem, que hostiliza entregador de comida que se encontrava descansando em um canto das docas do Shopping Center em que funciona seu negócio. As docas são pontos longe do acesso dos clientes, ficando geralmente às costas dos centros comerciais, e ali se realizam os trabalhos de carga e descarga de mercadorias.

Mesmo não se tratando de um lugar nobre, o empresário, de pele branca, insiste aos berros que o trabalhador, de pele escura, não deve ficar naquele local, muito menos recarregar o seu celular ali. Afirma expressamente ao trabalhador que ele é folgado e que ali não é a casa dele, falando-lhe que não paga 140 mil reais de aluguel para que entregador fique de folga no estabelecimento.

A comparação que se pode desenhar com o universo de Torto Arado é incrível: o novo dono da fazenda, na parte final do livro, apresenta-se de forma agressiva aos trabalhadores rurais, proibindo-os de construir casas de alvenaria e mesmo de enterrar seus defuntos naquelas terras, afirmando-se como proprietário e senhor dos destinos de todos e de tudo ali.

Mas as coincidências, resguardadas as diferenças de tempo e lugar, não param por aí. Em Torto Arado os trabalhadores afirmavam “viver de morada”: pediam para ficar na fazenda e trabalhavam na terra em troca da oportunidade, que poderia incluir uma agricultura de subsistência nos arredores da casa, coletas de frutos como buriti e dendê e ainda pescar no rio. Muitos dos trabalhadores em plataforma, similarmente, percebem-na como um lugar que dá trabalho a quem quiser trabalhar e em troca disso deixam parte de seus ganhos para essas empresas após longas horas.

Assim explicou Zeca Chapéu Grande ao seu filho: “Pedir morada é quando você não sabe para onde ir, porque não tem trabalho de onde vem. Não tem de onde tirar o sustento.”(…) Aí você pergunta pra quem tem e quem precisa de gente pra trabalho: ‘Moço, o senhor me dá morada?’”.[2]

Quando havia em Água Negra, a fazenda onde se passa a história contada no livro, alguém a questionar a injustiça da situação exploratória que viviam, logo essa objeção era rechaçada com o discurso da gratidão aos donos da terra por terem acolhido e dado trabalho a eles. Essa situação se dá da mesma forma em Torto Arado e nas plataformas digitais tortas, as quais são às vezes aclamadas por “dar trabalho”.

Em Torto Arado os proprietários nunca apareciam (somente quando as terras são vendidas é que o novo proprietário se faz presente de forma ostensiva, como visto acima). Era Sutério, o gerente-capataz, quem dava as ordens de fazer barragem, capinar, deixar a terra livre. Ele que dizia como deveriam e como não deveriam ser as casas dos trabalhadores, o que eles deviam e o que não podiam fazer.

Os algoritmos das plataformas digitais são o equivalente de Sutério: os proprietários não precisam aparecer para que as ordens sejam dadas e se façam cumpridas.  

Sutério também tomava os frutos do trabalho à força dos trabalhadores: passava nas casas e pegava batatas, feijão, abóbora e folhas de chá. Alguém disse “Que usura! Eles já ficam com o dinheiro da colheita do arroz e da cana!”. Outro respondia, com misto de deboche e indignação: “Mas a terra é deles. A gente que não dê que nos mandam embora. Cospem e mandam a gente sumir antes de secar o cuspo.”[3]

Pois a situação é bem similar aos inúmeros relatos de trabalhadores de plataforma em que as empresas ficam com parte dos ganhos dos trabalhadores de forma irregular, por meio de cancelamento de pagamentos, apropriação de gorjetas ou apontamentos fraudulentos de valores cobrados dos clientes.

O receio de serem dispensados a qualquer momento, como dito acima, e ficarem seu sustento, é o melhor trunfo dos exploradores do trabalho: no vídeo do sócio do restaurante, este ameaça dizendo que iria mandar a Ifood excluir o trabalhador, que ele não trabalharia mais lá. Em Torto Arado se diz: “Aquela fazenda sempre teria donos, e nós éramos meros trabalhadores, sem direito sobre ela”.[4]

Outro paralelo que se sobressai é a solução das leis para a questão. Em Torto Arado, o que se percebe não é a ausência de leis: os trabalhadores sabem que são explorados e que têm direito a terra, por serem quilombolas, ou que deveriam receber remuneração, por trabalharem para os donos da fazenda. O que falta são instituições para aplicá-la, ou uma aplicação correta pelas instituições quando aparecem.

A única instituição que aparece em Torto Arado, a polícia, toma uma decisão desviada dos fatos para favorecer os donos da fazenda. Da mesma forma acontece com as plataformas digitais: temos leis, inclusive o dispositivo específico que prevê a subordinação algorítmica.[5] Temos a solução do trabalho avulso ou do trabalho intermitente pronto para serem utilizados, se assim se quisesse. Mas os dispositivos legais são ignorados, acabando por proteger os proprietários das plataformas em detrimento da proteção dos trabalhadores de óbvia e ululante necessidade.

O torto e velho arado que dá título ao livro faz com que a terra fique infértil, destruída, dilacerada. A torta e nova utilização das plataformas digitais para a exploração de trabalhadores em sua maioria negros e despossuídos, que somente conseguem obter remuneração para a sobrevivência após se submeterem exaustivas e perigosas jornadas de trabalho,[6] faz com que a sociedade seja infértil, se destrua e permaneça dilacerada.

Como se diz em Torto Arado, “O vento não sopra, ele é a própria viração. Se o ar não se movimenta, não tem vento. Se a gente não se movimenta, não tem vida.”[7] As plataformas digitais não fazem intermediação de serviços, elas criam, modelam e organizam o próprio serviço que afirmam somente mediar.

Terminemos com uma frase de Zeca Chapéu Grande: “Esta terra que cresce mato, que cresce a caatinga, o buriti, o dendê, não é nada sem trabalho. Não vale nada. Pode valer até para essa gente que não trabalha. Que não abre uma cova, que não sabe semear e colher. Mas para gente como a gente a terra só tem valor se tem trabalho. Sem ele a terra não é nada.”[8] Uai, Zeca Chapéu Grande estava falando das plataformas digitais?  

Publicado originalmente no Jota, em 29/07/2021: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/torto-arado-plataformas-digitais-exploracao-colonial-29072021


[1] VIEIRA JUNIOR, Itamar. Torto Arado. São Paulo: Todavia, 2019.

[2] Idem, P. 185.

[3] Idem, p. 45.

[4] Idem, p. 79.

[5] Art. 6ª, Parágrafo único, CLT.  “Os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio”.

[6] ABÍLIO, Ludmila Costhek et al. Condições de trabalho de entregadores via plataforma digital durante a COVID-19. In Revista Jurídica Trabalho e Desenvolvimento Humano, v. 3, 2020.

[7] Idem, p. 99.

[8] Idem, p. 186.

O enviesamento de conceitos básicos sobre a uberização: o Poder Judiciário brasileiro mais uma vez na contramão – ARTIGO DE RODRIGO CARELLI

Não é segredo algum que o Brasil está na contramão do mundo em relação aos grandes desafios que enfrentam nossas sociedades no Século XXI: combate à pandemia, defesa de direitos humanos, proteção ao meio ambiente, combate à pobreza etc. Não é de se estranhar, portanto, que também o Poder Judiciário brasileiro, em especial o trabalhista, vem, em geral, apresentando decisões discrepantes do que vem decidindo a magistratura dos países centrais.

Como exemplo pátrio do que acabamos de afirmar, podemos apontar as decisões até agora conhecidas no Tribunal Superior do Trabalho, que não reconheceram vínculo de emprego de trabalhadores em empresas controladoras de plataformas digitais. Além dessas, podemos indicar que outras decisões do mesmo órgão superior da Justiça do Trabalho vêm blindando as empresas de realização de perícias judiciais nos algoritmos. Também podemos trazer como exemplo dessa dissonância a decisão atrapalhada e atabalhoada do Superior Tribunal de Justiça em conflito de competência que adentrou ao mérito e de forma totalmente incompetente afirmou de forma genérica e abstrata não existir vínculo empregatício entre trabalhadores e plataformas digitais (sic).

Obviamente que não se descuida da existência de vozes lúcidas dissonantes, mas que até agora se apresentam como minoritárias. Também deve ser feita a ressalva, como foi verificado em pelo menos dois tribunais regionais, da manipulação da jurisprudência que ocorre no Brasil a partir de pagamento de quantias a trabalhadores na forma de acordos judiciais quando as ações caem em juízos com alta probabilidade de derrota da tese empresarial.

Entretanto, como veremos à frente, em geral a resposta dada vem sendo escudada por argumentação e conceituação deficientes, resultando em decisões que fogem das conclusões tiradas na maior parte das cortes estrangeiras. Assim, devemos primeiro apresentar conceitos que são essenciais para a compreensão da sociedade que vivemos. Depois, passamos a demonstrar exemplos de decisões pelo mundo em que esses conceitos são bem apreendidos.

De fato, percebe-se a necessidade de maior rigor conceitual. Fala-se muito em Indústria 4.0, robotização, plataformas, aplicativos, revolução digital, uberização e, em verdade, pouca clareza se tem em relação a esses termos e o que representam de mudanças reais na nossa vida em sociedade. O senso comum é formado pelo determinismo e solucionismo tecnológicos, filhotes da crença de que a inovação – e não a transmissão de conhecimentos adquiridos – é o que move o humano na Terra, o que faz com que a opacidade em que esses processos ocorrem sejam tidos como normais pela maior parte das pessoas. O senso comum sempre é ladeado pelo mito da máquina, que desde Aristóteles assombra e maravilha o mundo, baseado na ilusão da substituição total do trabalho humano pelos robôs. O desvelamento das estruturas e das suas engrenagens, e, portanto, de seu funcionamento, somente pode ser realizado a partir da retirada das vendas que cobrem nossos olhos, representadas pela cegueira causada pelo fetichismo da tecnologia.

Vamos tentar então esclarecer alguns conceitos cruciais.

A uberização é um processo de organização do trabalho baseado na contratação precária e sob demanda de trabalhador formalmente rotulado como autônomo, com pagamento por peça ou tarefa e controle por programação. Apesar de levar o nome da empresa que detém a plataforma digital símbolo do trabalho atual, ela é um processo que ultrapassa e até antecede a entrada das plataformas no mercado. De fato, a uberização do trabalho pode ser encontrada já há um par de décadas em áreas como saúde, tecnologia da informação, jornalismo, advocacia, vendas diretas a consumidores e várias outras atividades, sendo caracterizadas pela contratação de trabalhadores por formas precárias de trabalho com ficta ou limitada autonomia, geralmente por meio de pessoas jurídicas (CNPJ ou MEI) ou figuras correlatas criadas para esconder a relação pessoal e subordinada trabalhista existente. Esse movimento vem sendo chancelado de forma acrítica por parte do Judiciário. Esse processo gerou, inclusive, diversas leis que legalizaram esse movimento empresarial, como é o caso dos salões parceiros e dos transportadores de cargas autônomos, excluindo-os da proteção trabalhista. O movimento não foi só centrífugo, como acabamos de exemplificar, mas também centrípeto, como bem lembra Ludmila Abílio, pela inserção da uberização no centro da regulação: a previsão do trabalho intermitente, clara figura do fenômeno, dentro da CLT. Pode-se dizer, assim, que a própria CLT foi uberizada.

Já a plataformização pode ser entendida como o trabalho uberizado comandado e controlado por meio de plataformas digitais. Assim, as empresas controladoras de plataformas digitais não criam um novo tipo de organização de trabalho: elas simplesmente utilizam-se de uma estrutura tecnológica que permite aprofundar o processo de forma mais eficiente e mais expandida, com possibilidade – e pretensão – de formação de monopólios nas suas áreas de negócio. É essa tecnologia que permite a uberização em larga escala que presenciamos hoje. Se há a criação de novas profissões, como os YouTubers, Influencers e Gamers, há a colocação de roupa nova em profissões velhas, que são precarizadas e degradadas, como motoristas e entrega de mercadorias.

Esses dois processos caminham sob outro mais amplo: a digitalização da sociedade. A digitalização pode ser entendida como processo geral e global de aplicação, em todas as esferas da vida, do uso intensivo de processamento eletrônico de dados transmitidos por comunicação via rede mundial. Relacionamentos amorosos, saúde, comunicação, trabalho, consumo, entretenimento, serviços privados ou públicos ou mesmo o modo de produzir (que se convencionou chamar de “Indústria 4.0”), tudo passa pela coleta de dados e seu processamento. É um processo contínuo que vivenciamos na pele durante a pandemia da Covid-19 e tende a crescer exponencialmente. Como processo geral e global, com pretensão de invasão e domínio de todas as esferas da vida, não faz qualquer sentido tratá-lo como próprio de um setor da economia. Ninguém, e nisso está incluído dizer nenhuma empresa, escapará desse processo de digitalização. A empresa digitalizada não é um setor da economia, mas é a característica da economia atual.

Outro conceito muito maltratado é o de plataforma digital. Ela pode estar relacionada com um modo específico de organização empresarial (marketplaces no estilo shopping centers), mas geralmente o que está por trás dessa ideia é a plataforma digital como a infraestrutura eletrônica para processamento, coleta e mineração de dados para tomada de decisões necessárias para a realização de atividade empresarial nos mais diversos setores da economia. Não faz nenhum sentido dizer que há um setor econômico específico de plataformas digitais, e fará cada vez menos sentido. Como se disse acima, a digitalização é um processo geral da sociedade, e, obviamente, da organização empresarial. Se o YouTube tem plataforma digital, o Facebook, Amazon, Netflix e Uber também, as Lojas Americanas, o Banco Itaú, a Localiza, o Magazine Luiza e em breve todas as empresas também terão, o que não mudará de forma alguma a área da economia que atuam. Até a milícia carioca usa plataforma própria para executar o serviço de mobilidade urbana na área controlada. Chamar qualquer negócio desses de empresa de tecnologia é um completo nonsense. O Banco Itaú continua sendo um banco, as Lojas Americanas são varejistas, a Localiza permanece no ramo de aluguel de carros, como a Uber pertence ao setor de transporte de pessoas e a Netflix se dedica à área de entretenimento audiovisual. Essas empresas não concorrem entre si, mas entre as empresas do mesmo setor econômico, o que é de uma obviedade ululante. A Amazon é empresa de tecnologia quando fornece estrutura e soluções tecnólogicas a outras empresas, como faz com a própria Uber e Lyft, que se utilizam da Amazon Web Services, não tendo estrutura ou tecnologia própria. Porém, a Amazon é uma empresa do ramo varejista quando vende produtos.

Um aplicativo, por sua vez, nada mais é do que a interface para acesso à infraestrutura eletrônica, ou seja, a plataforma digital. É o meio pelo qual se acessa a infraestrutura, e por meio da qual a empresa controla as pontas. Muitas pessoas chamam certos profissionais de “trabalhadores de aplicativos” e acreditam que eles representam uma nova categoria de trabalhadores, ou uma nova profissão, o que, além de faltar entendimento do que é um aplicativo, não conseguem compreender que um aplicativo e uma plataforma digital no controle será o destino de praticamente todo e qualquer trabalhador na face da terra. Todos os trabalhadores em home office já compreenderam isso, e os trabalhadores em depósitos da Amazon mais ainda, pois, por meio de aplicativo em aparelho eletrônico que devem portar ao longo de sua jornada de trabalho, são controlados, cronometrados e avaliados a cada passo por plataforma digital, que tem poder inclusive de dispensar os trabalhadores sem interferência humana. Os trabalhadores do McDonald’s, ou de um supermercado, ou de forma ainda mais clara, os atendentes de telemarketing são totalmente controlados por uma plataforma digital, tendo à sua frente uma tela em aparelho eletrônico que faz a interface.

Outra noção essencial, que atualmente ganha ares de um ser divino e misterioso, é a de algoritmo. Uma conceituação simples de algoritmo é a de conjunto de instruções para a obtenção de determinado resultado esperado. Essa noção é milenar, existe desde alguns séculos antes da invenção do primeiro computador. É como o passo a passo de uma receita de bolo. Aplicado a uma infraestrutura eletrônica, no entanto, potencializa-se pela possibilidade de processamento de alternativas e variáveis possíveis para a busca de maior eficiência na obtenção dos resultados desejados.

O algoritmo, aplicado a uma plataforma digital que permite a captura, mineração e aplicação de dados multiplica absurdamente seu poder de obtenção de resultados com a chamada inteligência artificial, que, apesar de inteligência não ter nada, pode ser entendida como concepção de desenhos que se baseiam em sequências de entradas que são compreendidas e armazenadas na máquina para a tomada de decisões automatizadas a partir da realização de correlações, sempre buscando maximizar o rendimento na obtenção dos resultados pretendidos. Deve-se lembrar que os resultados pretendidos são lançados, monitorados e modificados pelo proprietário do algoritmo.

Assim, quando percebemos algumas pessoas dizendo que o algoritmo é o patrão ficamos estarrecidos. Em uma plataforma digital (ou em qualquer dispositivo), o algoritmo não tem alma, nem vontade, nem entende nada do que está fazendo. Não compreende significados e o contexto social em que atua. Ele é um mero conjunto de instruções baseadas em inteligência artificial inscritas em uma plataforma digital para obtenção de um determinado resultado empresarial. Ele é todo o conjunto de regras e instruções que irão conduzir a atividade econômica quando realizada por meio de plataforma digital, pois ele dá o conteúdo para a infraestrutura.

O algoritmo seria o regulamento da empresa, contendo o conjunto de regras e instruções para organização da atividade, compreendendo o trabalho.  Mas ele não seria somente o regulamento de empresa, mas também o gerente, pois ele toma as decisões gerenciais médias, sempre a partir das decisões gerais traçadas pela diretoria da empresa, que é de carne e osso. Mas não só: o algoritmo também é o capataz ou encarregado, pois vigia os trabalhadores em relação ao cumprimento do regulamento da empresa, direciona rumo aos objetivos traçados e os pune diretamente (ou indicam isso ao superior hierárquico) caso não cumpram as regras. Tudo sempre, obviamente, sujeito a revisão e à palavra final da direção empresarial. Por isso que um algoritmo é, ao mesmo tempo, o regulamento da empresa, o gerente e o supervisor ou encarregado.

Dessa forma, torna-se absurda – além de violar o direito constitucional à ampla defesa, com os recursos a ela inerentes – qualquer decisão judicial que impeça o acesso de um demandante ao algoritmo. Não há como existir autonomia da vontade sem informação clara e aberta dos termos do contrato, que por mais um óbvio ululante, não podem ser secretos para uma parte. Viola a boa-fé contratual a existência de segredos não esperados pela outra parte. E é justamente o que acontece no trabalho para certas controladoras de plataformas digitais: a cada momento o trabalhador é surpreendido ou tenta decifrar quais são as regras constantes no próprio algoritmo, sempre correndo o risco de ser dispensado e não ter nem noção da razão, pois secreta, obscura ou oculta. Certamente esses dados não são parte de nenhum segredo comercial legitimamente oponível contra o trabalhador. Da mesma forma, e pelos mesmos motivos, as entidades representativas dos trabalhadores têm o direito de saber o conteúdo dos algoritmos sob pena de violação da autonomia da vontade coletiva, tornando-os impossibilitados na prática de pactuar, pois ninguém é obrigado a pactuar no escuro.

As decisões judiciais das cortes dos países centrais têm, em geral, compreendido essas noções centrais. A Corte de Justiça da Comunidade Europeia entendeu que não faz sentido entender a Uber como empresa de tecnologia, e sim de transporte de pessoas, que é a atividade econômica que efetivamente coordena e realiza. A Corte de Cassação da França, órgão judiciário máximo daquele país, já reconheceu por duas vezes o vínculo empregatício de trabalhadores em plataforma, baseando-se no controle realizado pelo sistema de geolocalização que permite a vigilância dos trabalhadores, consistindo em poder de direção e controle da execução da prestação de trabalho, ou seja, em subordinação. A Corte Superior do Trabalho na Alemanha, equivalente ao nosso Tribunal Superior do Trabalho,  entendeu, em relação a trabalhadores de microtarefas organizados por plataforma digital, que havia subordinação algorítmica, baseada em gamificação, pela necessidade de realização de algumas tarefas pelos trabalhadores para obtenção de tarefas maiores e assim alcançar um salário para sobreviver. O Tribunal Supremo espanhol, por duas vezes, entendeu que o real meio de produção de uma plataforma digital é o programa informático que organiza a atividade econômica, sendo a motocicleta e o celular meios acessórios ou complementares. Tais decisões geraram a edição de lei, que, além de reconhecer o vínculo empregatício de forma expressa de entregadores organizados por plataforma, ainda estendeu aos sindicatos o direito de informação sobre o algoritmo em tudo o que se relaciona com o trabalho. A divisão de apelação da Suprema Corte de Nova Iorque, nos Estados Unidos, também verificou que a Uber exerce a atividade econômica de transporte com total controle sobre a atividade e trabalhadores, desde o acesso dos motoristas aos consumidores, o preço das corridas e a taxa dos motoristas, considerando-os empregados. A Bélgica já decidiu, em decisão que não cabe mais recurso, pelo vínculo de emprego com empresa controladora de plataforma, pois, a partir de precedente da Corte de Cassação, deve ser verificada a subordinação durante o trabalho, sendo irrelevante o fato de estar livre para atender ou não a chamada de emprego. A Holanda também acatou os pedidos em ação coletiva ajuizada pela Federação dos Sindicatos e entendeu que o algoritmo Frank, da empresa Deliveroo, é desenhado para influenciar decisivamente o comportamento dos entregadores, não podendo ser considerados trabalhadores autônomos. No Reino Unido, foi entendido o sistema de avaliação realizado pelos clientes como pura ferramenta interna para gerenciar performance e uma base para tomada de decisões finais, pela empresa ou diretamente pelo algoritmo, sendo caracterizada a subordinação característica da relação de emprego. Na Itália, a Justiça considerou o algoritmo da plataforma como meio de planejar e gerenciar fluxos do negócio e que o ranking de trabalhadores criado pelo próprio algoritmo demonstra essa capacidade. Inclusive, nesse país foi entendido que o algoritmo, ao criar esse ranking e não atentar a fatores individuais de cada trabalhador, representa cegueira deliberada criadora de discriminação contra trabalhadores em greve, ou em situação gravídica, de saúde etc.

O Brasil tem um diferencial em relação a todos esses países em termos de legislação trabalhista: nosso ordenamento é o único que, desde o ano de 2011, expressamente prevê a subordinação algorítmica, no parágrafo único do art. 6º da Consolidação das Leis do Trabalho: “Os meios telemáticos e informatizados de comando, controle e supervisão se equiparam, para fins de subordinação jurídica, aos meios pessoais e diretos de comando, controle e supervisão do trabalho alheio.” Estamos preparados legalmente para reconhecer a condição de empregados submetidos a comando, controle e subordinação por meio de algoritmos baseados em inteligência artificial inseridos em infraestruturas eletrônicas denominadas de plataformas digitais.

Entretanto, esse artigo da lei vem sendo especialmente deixado de lado, quando não ignorado solenemente, por alguns magistrados, que preferem cair na sedução do discurso das empresas completamente afastado da realidade, que dá aura angelical e metafísica a instrumentos tão mundanos como as plataformas digitais, algoritmos e processos de uberização e digitalização. Verifica-se um ativismo judicial que somente pode partir da ignorância dos processos de digitalização da sociedade e de uma (má-)compreensão de seus conceitos básicos permeada por uma visão ideologizada do papel da tecnologia.

Além disso, temos instrumentos legais prontos para receber os trabalhadores sob demanda, como o já citado trabalho intermitente, que é um tipo de relação de emprego e o trabalho avulso, que não é subordinado mas tem todos os direitos sociais garantidos, demonstrando a falácia de que os direitos são vinculados à relação de emprego – ou “à CLT”, como gostam de repetir incansável e propositalmente. Essas duas categorias são tipicamente de trabalhadores sob demanda, e poderiam facilmente ser aplicados a casos de trabalho por plataforma. Esses dispositivos alternativos também vêm sendo ignorados.

O que temos presenciado é um esvaziamento subjetivo do direito do trabalho. Uma fuga da responsabilidade empresarial por direitos, muitas vezes chancelada por magistrados sob a desculpa tecnológica (ou até mesmo sem ela, no caso da uberização sem plataformização). A uberização é uma escolha política e o Poder Judiciário tem um papel essencial nessa tomada de posição. Levar os conceitos a sério ou acreditar na visão edulcorada e fantasiosa das empresas controladoras de plataformas digitais: essa é a decisão que deve ser tomada hoje e pela qual as futuras gerações nos cobrarão de maneira eloquente e direta: o que vocês fizeram para impedir a destruição de toda a proteção social e dos laços comunitários e nos deixaram toda essa conta a pagar?

Rodrigo Carelli é doutor em Sociologia pelo IESP/UERJ, mestre em Direito e Sociologia pela UFF, Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, líder do Grupo de Pesquisa Trabalho no Século XXI – Trab21 e Procurador do Trabalho no Rio de Janeiro.

Artigo originalmente publicado pelo Coletivo Transforma MP e no GGN.

Lançamento dos Livros Black Mirror Law e Black Mirror Direito e Sociedade – Vol. 2

“Se a tecnologia é uma droga — e parece ser uma droga — então quais são, precisamente, os seus efeitos colaterais?” (Charlie Brooker, criador de Black Mirror).

A partir da interpelação destes efeitos colaterais da tecnologia e do avanço do neoliberalismo no mundo contemporâneo, os grupos de pesquisa Direito e Cinema e Direito do Trabalho no Século XXI (TRAB21), apresentam os livros Black Mirror Law e Black Mirror Direito e Sociedade – Vol. 2.

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O evento contará com a presença dos professores Juliana Neuenshwander, Rodrigo Carelli, Carol Proner, Gisele Ricobom, Manuel Gándara e dos estudantes Alessa Alves, Andrey Noá, Antônio Villanova, Fredson Carneiro, Ludmila Coelho, Lusmarina Garcia, Marcus Matos, Marianna Corrêa, Nathália Fernandes, Pedro Amorim e Sávio Mello.

Vem bater esse papo conosco! O lançamento ocorrerá hoje, 07 de junho, às 16h e será transmitido no canal do Youtube do TRAB21: 🎥 https://youtu.be/mL45k8pnS_o.

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ARMAZENADOS EM UM TRABALHO SEM SENTIDO – RESENHA DO FILME “ALMACENADOS” (MÉXICO, 2015) – POR CÁTIA CRISTINA DE ARAÚJO QUARTEROLLI BASTOS

A versão para o cinema de Almacenados (2015), dirigido por Jack Zagha Kababie (Adiós mundo cruel e O Último Trago), gira em torno do tema trabalho e, a partir dessa pedra angular, traz ao espectador questionamentos profundos relacionados ao tema, especialmente quanto ao sentido do trabalho, às diferentes percepções a esse respeito entre gerações e à necessidade de sujeição do trabalhador a qualquer trabalho, independentemente do sentido que dá a ele.   

O filme preserva o ar teatral da peça original (de David Desola), mantendo como cenário, a maior parte do tempo, somente o depósito onde as personagens interagem (ou não). Assim como o cenário, o elenco também é intimista, sendo seus protagonistas representados por José Carlos Ruiz e Hoze Meléndez – basicamente, os únicos atores que aparecem diante das câmeras durante todo o longa-metragem.

A história tem como ponto de partida o encontro entre dois indivíduos em momentos cruciais das suas vidas na condição de “trabalhador”: o ingresso e a saída do mercado de trabalho. A partir dessa premissa e dos diálogos entre esses dois personagens em situações tão distintas e, ao mesmo tempo, tão similares, outras escassas informações vão sendo trazidas à tona, envolvendo a rotina daquele local, o valor dado por eles ao trabalho e até mesmo sobre a esfera pessoal da vida das personagens – esta última relegada a segundo plano, mas não menos importante.

O Sr. Lino (José Carlos Ruiz) é um encarregado de depósito numa fábrica de hastes e mastros, sendo que, no local em que trabalha, só se recebe o segundo tipo de produto. Restando cinco dias para sua aposentadoria, recebe o ajudante que irá substituí-lo na função, o jovem Nin (Hoze Meléndez), a quem apresenta todas as regras que lhe foram impostas em seu primeiro dia de trabalho, há 39 anos atrás e as quais, desde então, jamais ousou desrespeitar. Contudo, para sua surpresa (e alguma exasperação!), o Sr. Lino identifica muito rapidamente no assistente recém-chegado uma atitude de questionamento – por ele vista como descaso – em relação à normatividade que o cargo exigiria, sua importância e responsabilidade envolvida. Outras diferenças vão sendo apresentadas ao longo da trama, pondo em evidência que as funções e regras tão enaltecidas pelo Sr. Lino, são percebidas por Nin como atividades rotineiras e burocráticas vinculadas a um emprego mal remunerado. O curioso é que, a despeito dessas visões diversas sobre o trabalho e seu sentido, Sr. Lino e Nin têm em comum a necessidade, ainda que por razões diferentes, de lá permanecer.

As questões suscitadas por Almacenados podem ser analisadas a partir da obra do antropólogo David Graeber, intitulada Bullshit Jobs: A Theory (2018), que aponta para a existência de empregos sem sentido e analisa seus impactos sociais.  Para o autor, vivemos numa sociedade baseada no trabalho como um fim em si mesmo, sem a exigência de que seja considerado produtivo ou que traga um bem à coletividade. A definição trazida por Graeber para o que ele tratará por “empregos sem sentido” (no original, bullshit é uma forma de palavrão para identificar o trabalho sem sentido, tendo sido traduzido no espanhol para “trabajos de mierda, é “uma forma de emprego tão carente de sentido, tão desnecessária ou tão prejudicial que nem sequer o próprio trabalhador é capaz de justificar sua existência, apesar de que, como parte das condições do emprego, o dito trabalhador sente-se obrigado a fingir que não é assim”. De tal conceito, podemos ver o emprego do sr. Lino descrito, inclusive quanto à necessidade de dar a ele a importância e o sentido que não possui de fato, como vem a perceber rapidamente Nin, gerando o maior conflito do filme.

Em um processo de subjetivação do empregado, junto com o consentimento coletivo de uma civilização que julga pertinente gastar boa parte de seus dias e/ou noites em tarefas sem sentido, não causa maior estranheza encontrarmos o Sr. Lino valorizando cada uma das tarefas constantes de seu ralo leque de atribuições, com a inflexibilidade de horários e procedimentos, em busca de atribuir sentido que justifique o recebimento de um pagamento por aquele trabalho e, em grande medida, à sua própria existência. O relógio rotineiramente adiantado e as incansáveis formigas com as quais ele se identifica ajudam a atribuir algum sentido à rotina solitária desse trabalhador e fazem parte da descrição extensa do cotidiano daquele depósito, conforme o Sr. Lino destaca para Nin.

O filme também desmente a crença coletiva de que, no mundo capitalista (extensível às reformas neoliberais), empresas privadas jamais contratariam pessoas e criariam postos de trabalho que não fossem realmente necessárias à organização, com foco em produtividade e vigilância.   No entanto, as reformas neoliberais, não raras vezes, trazem mais burocracia, sendo a pressão por metas mais direcionada às camadas basilares, com a proliferação de cargos gerenciais e administrativos absolutamente sem sentido. Assim é a burocracia da rotina do Sr. Lino, autoridade máxima dentro do depósito onde trabalha, cuja rigidez autoimposta não cede nem mesmo em relação ao horário de varrer o chão de seu setor.

O trabalho desenvolvido pelo Sr. Lino, portanto, pode ser encontrado entre as principais variedades de empregos sem sentido listadas por Graeber, que sugere a seguinte classificação: a) o trabalho feito por aduladores; b) o trabalho feito por seguranças; c) o trabalho feito por empregados que resolvem problemas de defeitos de funcionamento; d) aquele feito por trabalhadores que existem apenas para que a empresa diga que está fazendo algo que, efetivamente não faz e; e) o trabalho feito por supervisores. Com essa proposta, poderia se ajustar ao item “d”, uma vez que a fábrica, embora se dizendo fabricar hastes e mastros, há pelo menos 39 anos jamais recebeu um mastro no depósito sob os seus cuidados, ficando a indagação sobre a que se presta esse espaço sem uso diante das estratégias negociais daquela empresa.

Cumpre ressaltar, no entanto, que a classificação trazida por Graeber está longe de se ater a trabalhos mal remunerados, como aquele do Sr. Lino e de Nin, como é o exemplo trazido pelo autor dos cabeleireiros, que, nos bairros de classes trabalhadoras, ocupam função de centros de reunião, troca de informações, além da questão sanitária evidente.

Nesse contexto de trabalho sem sentido, a proposta de novas ideias e questionamentos trazidos por Nin, assistente e natural substituto, não encontram abrigo sem muita resistência pelo Sr. Lino, até mesmo quando o jovem trabalhador traz uma cadeira para se sentar no segundo dia na empresa – uma vez que o Sr. Lino permaneceu 11 anos em pé, sem pensar nessa possibilidade. É que tais questionamentos, muito embora para Nin buscassem até mesmo o bem do Sr. Lino, para este último geram não só dúvidas quanto à importância do seu trabalho, mas, em última análise, em relação a sua própria relevância no mundo.

Malgrado a perspectiva minimalista do cenário do filme, é possível redimensionar o questionamento dado por ele sobre sentido do trabalho, saindo da figura dos trabalhadores ali apresentados e voltando-se para o panorama que se afigura, pelo menos, nas três últimas décadas, com a rápida ascensão da economia de serviços (em detrimento do setor agropecuário e manufatureiro), principalmente em países ricos, trazendo uma nova distribuição da força laboral. Além disso, as novas tecnologias e suas ferramentas de comunicação, as plataformas têm substituído supervisores por algoritmos. Nesse contexto, questiona-se: serão esses trabalhos mais dotados de sentido para quem os executa do que aquele desempenhado pelo Sr. Lino? Ou estamos apenas reeditando essa ausência de sentido por meio da tecnologia?

Nessa nova lógica da economia, ocorre a financeirização das empresas, que não precisam lucrar, como é o caso de empresas de plataforma digital de transporte de passageiros que, mais do que o serviço oferecido, representam um novo paradigma nas relações negociais. Para Graeber, não por acaso, as empresas dedicam-se cada vez menos a atividades econômicas como fabricar e construir em prol de processos políticos de apropriação, alocação e distribuição de dinheiro e recursos, pouco importando o ramo de atividade. Ainda segundo o autor, essa abordagem gerencial das empresas acaba servindo como uma forma encoberta de feudalismo, na medida em que riqueza e posição são distribuídos por critérios políticos, tornando indistintas as esferas econômica e política.

Portanto, para muito além da polaridade entre antigas e novas práticas, representadas pelo Sr. Lino e Nin no filme Almacenados, o sistema que está em operação por trás de sua temática transcende, em muito, as relações de trabalho que ali estão simbolizadas para, à luz da obra de Graeber, ser possível vislumbrar muitos outros agentes e elementos que propiciam a manutenção desses trabalhos sem sentido que, pela necessidade daqueles que nesses se engajam, contribuem para a manutenção desse status quo.

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