ATENÇÃO: CONTÉM SPOILERS!
O filme “A Nossa Espera” -“Nos batailles”, ou “Nossas batalhas”, no original – (Bélgica/França, 2018) é uma obra realista e sensível, em que o diretor Guillaume Senez mostra as fragilidades do neoliberalismo patriarcal a partir de um ângulo inesperado. Em breves linhas, o longa apresenta as dificuldades enfrentadas por um homem muito engajado em seu trabalho remunerado e ausente para o zelo de sua família e casa, que de repente se vê responsável por todo o trabalho de cuidado no lar após o abandono de sua esposa, esgotada física e emocionalmente pelos encargos impostos e assumidos como mulher, mãe e empregada remunerada.
A trama, elogiada na Semana da Crítica do Festival de Cannes em 2018, traz como personagem principal Olivier, em uma atuação impressionante do ator Romain Duris. Olivier é um empregado sindicalizado, engajado com seu labor e com os(as) trabalhadores(as) do depósito onde atua. Neste ambiente, o filme retrata a frieza do tratamento oferecido pela empresa aos(às) empregados(as), com exigências cada vez mais rígidas e menos humanizadas – o uso do tablet como instrumento de controle, por exemplo, simboliza esta tendência, em uma possível referência às operações logísticas da Amazon.
No depósito, Olivier é um empregado dedicado e empático com os(as) colegas de trabalho, posicionando-se contra o fim dos seus contratos e tentando entender as motivações arbitrárias e fraudulentas usadas pela empresa para estas descontinuações contratuais. Os problemas nas relações de trabalho no local atormentam o personagem, que percebe na maioria dos trabalhadores o medo de engajar-se coletivamente em defesa de melhores condições, já que a resposta oferecida pela empresa é “se está ruim, a porta é logo ali”. Assim, o filme aborda também a agressividade das políticas neoliberais com seus contratos por tempo determinado, e os impactos destas instabilidades e precarizações no ambiente de trabalho.
Em casa, por outro lado, o personagem se mostra um pai disponível em raros momentos: somente no tempo que sobra após sua dedicação intensa às demandas da empresa e do sindicato. A personagem Laura, sua esposa e mãe de Elliot e Rose, é quem cuida de todos os afazeres do lar, além dos carinhos para os filhos e marido. No entanto, Laura realiza também um labor remunerado em uma loja de roupas, conciliando todos estes deveres nos mesmos períodos temporais em que Olivier se dedica quase que exclusivamente à ocupação remunerada. Além disso, ela se ocupa em esconder seus problemas de saúde do marido, preferindo mantê-lo despreocupado e confortável em casa.
A família funciona neste formato nos primeiros minutos do filme, que mostra os dias diferentes vividos pelos personagens: enquanto o marido exerce sua função remunerada e usufrui dos cuidados da esposa ao chegar em casa, Laura trabalha na loja, cuida da educação e saúde dos filhos, levando a consultas e às aulas, trata e culpabiliza-se por seus machucados e incômodos, lê histórias para que durmam, mantém a casa limpa e alimenta todos.
Ainda no início da trama, no entanto, a mulher vai embora. O longa passa, então, a apresentar as reflexões sobre as exaustivas jornadas femininas a partir da ausência da esposa e mãe. Deste momento do filme em diante, Olivier precisaria lidar também com as questões de saúde física, mental e emocional dos filhos; sua rotina escolar; as tarefas de casa etc. Com muita sutileza, são apresentadas então as suas dificuldades causadas pelos diferentes habitus masculinos[1]. Entre elas está o seu esforço para reprimir as emoções das crianças – e seus próprios sentimentos –, como a saudade que sentem de Laura, muito presente ao longo da narrativa.
No artigo A arte de ser Beija-Flor na tripla jornada de trabalho da mulher, as psicólogas e professoras Adriane Vieira e Graziele Amaral utilizam o marco teórico de Pierre Bourdieu na obra “A Dominação Masculina”[2] para explicar como se dá a biologização do social para consolidação da dominação patriarcal. No habitus de um gênero ou de outro estão os resultados – em pensamentos, expectativas e ações – das ideias de dominação culturalmente absorvidas pelos sujeitos. Assim, impregnam-se as atitudes e opiniões femininas e masculinas da representação da mulher como um ser frágil, encarregado dos cuidados e afetos; e, do homem, como forte provedor, um ser dominante.
Em diversas cenas, A Nossa Espera mostra como essa relação vertical é exaustiva para a mulher. Não apenas para a esposa Laura, mas também para a mãe e a irmã de Olivier, que logo são chamadas a prestar os trabalhos de cuidado quando estes se acumulam ao emprego do protagonista. Em mais de um momento, ele é chamado por estas mulheres a refletir sobre os impactos que essa divisão sexual do trabalho causou em sua esposa; sua própria mãe relata que, quando mais jovem, pensou diversas vezes em fugir, abandonando esse acúmulo de tarefas no cuidado do lar, crianças e marido.
Ele também ignora e retruca veementemente quando sua irmã tenta fazê-lo refletir sobre os padrões que repete de seu pai, questionando a sua ausência familiar e como isso afetou as suas vidas. Mesmo frente a esses confrontamentos, a princípio Olivier se mostra irredutível quanto às críticas e, pondo de lado a exaustão física e mental que vivia Laura, repete: “não se abandona a própria família”.
O filme, riquíssimo nas nuances da construção do personagem, apresenta-nos um Olivier que por diversas vezes reproduz comportamentos típicos de uma agressividade masculina contra as mulheres[3]: em gritos com sua mãe, ofensas contra sua irmã, assédio contra a colega de trabalho. Por outro lado, vemos o protagonista começar a observar com cada vez mais cautela, ao longo das cenas, as desigualdades de gênero, a importância e a universalidade do afeto e do cuidado.
A demissão de uma mulher grávida no depósito onde labora e o lugar secundário que resta a sua colega sindicalista são dois exemplos carregados de significado. No filme, uma empregada do local onde atua Olivier não tem o seu contrato renovado após o médico do trabalho vazar a informação de sua gravidez, lembrando-nos de como – apesar de necessitar dele para a sua continuidade – o capital segue menosprezando o trabalho do cuidado sempre que possível. De acordo com uma pesquisa da Fundação Getúlio Vargas realizada no ano de 2016, a empregabilidade das mulheres diminui consideravelmente após o fim da licença maternidade no Brasil[4].
No caso de sua amiga do sindicato, o protagonista é convidado a ocupar uma posição estratégica em nome da instituição, enquanto sua colega com muito mais tempo de atuação sindical é colocada como segunda opção. Nesta cena, junto com Oliver, os espectadores são chamados a refletir também sobre os impactos da divisão sexual do trabalho no reconhecimento das trabalhadoras não só pelas empresas, mas também pelas instituições de representação coletiva[5].
No artigo da professora e pesquisadora Romina Lerussi[6], estas desigualdades estruturais aparecem como um alerta epistemológico para o Direito, que pode ser resumido no seguinte esquema: (i) se o próprio Princípio Protetor é fruto do reconhecimento de uma desigualdade primária – a que existe entre empregado e empregador; (ii) e se assumimos criticamente a perspectiva masculina que a divisão do trabalho carrega desde o início; então é absolutamente necessário que as raízes do problema de gênero sejam apontados na criação de um Direito do Trabalho verdadeiramente preocupado com as equiparações sociais.
Como abordam Vieira e Amaral[7], quando o capitalismo passa a exigir o trabalho como um requisito para a dignificação do homem, para a mulher isto implica duas verdades: em primeiro lugar, é a cultura masculina que se toma como medida para este trabalho; em segundo, que a mulher, ainda assim, não será digna apenas pelo seu trabalho remunerado, pois o mundo continua pedindo a ela que cuide da casa, dos filhos, dos idosos e do marido. Assim, a presença da mulher no local de trabalho não a livra dos demais critérios para o seu reconhecimento social.
A exaustão de Laura no filme comentado nos leva a refletir por aspectos muito diversos. Por um lado, podemos pensar em como as relações precárias de trabalho (como os contratos por tempo determinado, questão presente no longa-metragem) afetam em maior grau as mulheres; no quanto a culpa pela casa e pelos filhos recai para a mãe e esposa, ainda que ela também carregue consigo o peso de um dia de trabalho remunerado, fora de seu lar; no tempo que sobra, neste cenário, para a sua mobilização coletiva.
Por outro lado, ao pensar em soluções, somos convidados(as) a imaginar um novo Direito do Trabalho que leve em conta estes problemas, que são tão estruturais quanto a própria expropriação do trabalho: sua divisão sexual e seu critério de medida e avaliação a partir do trabalhador (homem) industrial. Apesar da ilusão de neutralidade do ponto de vista, as diferenças de gênero persistem e ignorá-las torna o Princípio Protetor mais vazio para todas e todos. Nas palavras de Romina Lerussi, “insistir numa adaptação forçada ao modelo canónico de trabalho remunerado típico e insistir no pleno emprego em condições de feminização progressiva do trabalho (…) leva-nos precisamente à morte do direito do trabalho e ao abandono sem mais delongas de todas as pessoas trabalhadoras do mundo”[8].
MAYSA SANTOS DE ANDRADE É BACHAREL EM DIREITO E MESTRANDA NO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO. PESQUISADORA NO GRUPO DE PESQUISA TRAB21.
[1] VIEIRA, Adriane; AMARAL, Graziele Alves. A arte de ser Beija-Flor na tripla jornada de trabalho da mulher. Saúde e Sociedade [online]. 2013, v. 22, n. 2. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0104-12902013000200012. Acesso em 10 de junho de 2021.
[2] BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Tradução: Maria Helena. Kühner – 2a ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002 apud VIEIRA, Adriane; AMARAL, Graziele Alves. A arte de ser Beija-Flor na tripla jornada de trabalho da mulher. Saúde e Sociedade [online]. 2013, v. 22, n. 2. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0104-12902013000200012. Acesso em 10 de junho de 2021.
[3] Nas discussões quanto à dominação patriarcal a partir do conceito de habitus, Vieira e Amaral (2013) explicam o engendramento das ideias de força e virilidade ao sexo masculino, que justificam essas práticas sociais como naturais.
[4] Disponível em https://portal.fgv.br/think-tank/mulheres-perdem-trabalho-apos-terem-filhos. Acesso em 10 de junho de 2021.
[5] Sobre o tema, ver FERREIRA, Márcia Vieira et al. Abordagem das desigualdades de gênero e diversidade sexual em sindicatos de trabalhadoras/es em educação: o caso da confederação nacional dos trabalhadores em educação (cnte). Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, [S.L.], v. 99, n. 252.
[6] LERUSSI, Romina Carla. Orientaciones feministas para un nuevo derecho del trabajo / Feminist orientations for a new labor law. Revista Direito e Práxis, [S.l.], v. 11, n. 4, p. 2725-2742, dez. 2020. ISSN 2179-8966. Disponível em: <https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revistaceaju/article/view/50159>. Acesso em: 14 jun. 2021.
[7] VIEIRA, Adriane; AMARAL, Graziele Alves, op. cit.
[8] LERUSSI, Romina. op. cit, p. 2737.