Lucas Beraldo do Oliveira*
ATENÇÃO: CONTÉM MUITOS SPOILERS!
“Agora eu não tenho me olhado no espelho para poder imaginar meu futuro. Eu só penso em dar o melhor pro meu filho. Trabalhar, trabalhar, trabalhar para dar o melhor pra ele. Até agora eu não parei no espelho para me perguntar o que eu quero ser no futuro”, diz Vitor dos Santos, 19 anos, pai de um recém-nascido, morador do Centro da cidade do Rio de Janeiro, que trabalha como entregador para empresas-aplicativo[1] pedalando uma bicicleta alugada[2]. O relato de Vitor evidencia uma crise de identidade gerada pela falta de perspectiva de um futuro digno oferecido por seu atual trabalho que afirma ser extenuante, cujo vínculo de emprego não é reconhecido, que lhe toma muitas horas do dia e proporciona um pagamento que reputa tanto como baixo, quanto incerto.
Em que pese sua dúvida sobre si mesmo e seu futuro, o discurso de Vitor muda radicalmente quando este fala sobre a dinâmica laboral em si. Trocando o lirismo angustiante da metáfora do espelho, Vitor fala de quilômetros, de valores, de percursos e horários de forma absolutamente objetiva. Apresenta com clareza o processo de entrega, mostrando os elementos que lhe são conhecidos e como lida com eles. Pedalou tantos quilômetros, recebeu tanto (antes recebia um bom valor, hoje não mais). Fez tantas corridas hoje, assim como fez tantas ontem (sempre menos do que gostaria).
A disparidade entre as representações que Vítor faz dos efeitos do trabalho sobre sua identidade e do processo do trabalho em si são úteis para ilustrar o que o sociólogo italiano Maurizio Lazzarato denomina de duplo investimento sobre subjetividades que compõe a economia (LAZZARATO, 2014, p. 23). Para o autor, a produção de riqueza opera na interseção de dois aparatos heterogêneos de poder: a sujeição social e a servidão maquínica (LAZZARATO, 2014, p. 24). Aproveitando a metáfora de Vitor, o objetivo deste texto é discutir sobre a subjetividade dos trabalhadores no neoliberalismo a partir da perspectiva da Lazzarato recorrendo a dois documentários “espelhados”: A Cidade de quem corre, de 2019, dirigido por Fernando Martins e Vidas entregues, de 2020, cuja direção é de Renato Prata Biar. Espelhados porque, muito parecidos em seu conteúdo, ambos colhem os relatos de três entregadores de bicicleta sobre sua vida e seu labor, sendo o primeiro ambientado na cidade de São Paulo e o segundo no Rio de Janeiro.
Vitor, por sinal, é um dos depoentes do carioca Vidas entregues. A sua declaração de não se olhar no espelho é especialmente bonita, mas está longe de ser um sentimento isolado entre os entregadores. Em Cidade de quem corre, os entregadores Gutierrez Ponciano, Renan de Lima Neto e Caique Oliveira abrem o documentário declarando o que almejam profissionalmente – querem ganhar a vida de outra forma, sendo ator, lutador de MMA ou engenheiro civil respectivamente –, contrastando com o que fazem agora. O sentimento latente destes relatos é que o trabalho oferecido pela gig-economy[3] não é – em arrepio do que diz a propaganda – um bico transitório, que pode se encaixar nas janelas de tempo hábil da rotina dos indivíduos, mas uma atividade que exige esforço extenuante e uma quantidade colossal de tempo em que o entregador fica à disposição da empresa (sem receber por isso remuneração) para ter alguma chance de conseguir o mínimo para seu sustento.
Em Vidas entregues, os depoentes afirmam categoricamente que não se percebem como empreendedores. Se reconhecem como desempregados, desesperados, membros de um contingente que se avoluma nos anos recentes no contexto brasileiro. Querem emprego, carreira, benefícios sociais e o trabalho de entrega é tolerável apenas como uma condição provisória, um episódio – breve, com sorte – de suas vidas profissionais. Nota-se, então, uma imensa insatisfação no contraste entre a atual situação profissional dos depoentes – a atividade de entrega sem vínculo de emprego – e suas aspirações profissionais e pessoais.
Pois bem, Lazzarato denomina de sujeição social a produção social de subjetividades individuais: identidade, sexo, profissão, nacionalidade, enfim, tudo aquilo que determina lugares e papéis na e para a divisão social do trabalho (LAZZARATO, 2014, p. 24). A sujeição opera reduzindo toda multiplicidade[4] a uma série de dualismos – sujeito/objeto, natureza/cultura, indivíduo/sociedade, proprietário/não-proprietário – o que permite ao capitalismo estabelecer hierarquias entre os diferentes papéis (LAZZARATO, 2014, p. 35). A leitura dual da diversidade é totalizadora, enquadrando qualquer diversidade dentro de suas categorias polares (LAZZARATO, 2014, p. 36). A linguagem aparece como tecnologia da sujeição social por excelência, criando uma rede significante e representativa da qual ninguém escapa. É através da linguagem, dentro do processo de sujeição social, que nos concebemos como sujeitos de uma determinada maneira. A sujeição social, portanto, enquadra o indivíduo em um espaço na sociedade, transformando o indivíduo em um sujeito.
O outro aparato do poder que produz subjetividade é a servidão maquínica que, diferentemente da sujeição, opera por meio da dessubjetivação, mobilizando dimensões funcionais e operacionais, não-representativas e assignificantes da existência. Na servidão maquínica, os indivíduos se tornam dividuados, passíveis de serem divididos conforme sua função e atuação em um processo, ou seja, são concebidos enquanto dados de um sistema. Ao invés dos dualismos da sujeição social, a servidão maquínica funciona representando máquinas e pessoas de forma contígua, isto é, na servidão maquínica importam apenas os inputs e outputs de determinado processo, independente se gerados pela máquina ou pelo ser humano. As coisas ou a pessoas são medidas apenas conforme seu papel na produção, comunicação, consumo etc (LAZZARATO, 2014, p. 27). Metaforicamente, tudo é compreendido como uma engrenagem do sistema, seja ele econômico, social ou comunicacional. Enquanto a sujeição recorre a figuras transcendentes, como a noção de homem, mulher, sociedade, natureza, propriedade e outras, a servidão maquínica se importa com a imanência: os processos tais como são, sem precisar recorrer a significantes. Por isso desterritorializa, opera com fluxos decodificados, não centrados no indivíduo ou subjetividade humana, mas em enormes maquinismos. As partes que compõe o trabalho (vivas ou não) podem ser expressas em termos de informação e esta informação não tem mais um referencial antropocêntrico (LAZZARATO, 2014, p. 29).
Importante apontar que a servidão maquínica e a sujeição social não são aparatos de poder antagônicos, pelo contrário, Lazzarato afirma que no neoliberalismo são usados de forma complementar. Para que a servidão maquínica seja instaurada, transformando os seres humanos em objetos mecânicos da máquina, é preciso um trabalho de produção de subjetividades que crie sujeitos que acreditem e defendam determinados valores adequados as relações de produção (LAZZARATO, 2014, p. 33). Ao comprar a força de trabalho, o Capital paga por sujeição (horas de dedicação, disponibilidade e afins), mas o que recebe é o direito de explorar, pela servidão, uma amálgama complexa de órgãos (cérebro, músculos, mãos) e faculdades humanas (cognição, percepção, memória) e, de outro lado, da performance física e intelectual de máquinas, protocolos, sistemas de signos, ciências etc (LAZZARATO, 2014, p. 45).
Assim, apesar de ser nítido o descontentamento dos entregadores cujos relatos constam nos documentários Vidas Entregues e Cidade de quem corre, a eficácia parcial da sujeição social neoliberal se deixa transparecer em algumas falas. Os entregadores entrevistados acreditam na conquista de uma melhor condição de vida pelo “suor”, isto é, pelo esforço, resiliência, disciplina diária. Um dos depoentes afirma que não entende quem diz que eles são classe C, pois sendo eles elementos indispensáveis no fluxo produtivo da cidade deveriam ser referidos como classe A. Os primeiros versos da canção que encerra o documentário Cidade de quem corre são justamente “mais um dia para fazer mais que ontem”[5]. A sujeição social opera, portanto, incutindo – com sucesso pelo menos parcial – um respeito e valorização de uma moral do trabalho, do esforço, da abnegação que permite minimamente que esses indivíduos ocupem esse espaço social útil para o funcionamento do sistema.
A economia capitalista, afirma Lazzarato, é uma economia subjetiva. A subjetividade existe para a máquina, justamente porque no capitalismo as relações de poder derivam da organização de maquinismo (em comparação, as relações de poder feudal que derivavam da esfera pessoal) (LAZZARATO, 2014, p. 29). Mas é no neoliberalismo que ocorre a generalização da servidão maquínica (LAZZARATO, 2014, p. 33). Desde 1980, o paradigma da sujeição mudou. Os trabalhadores não se percebem mais como trabalhando para um chefe, mas sim trabalhando sobre si mesmos, se transformando em capital humano. Esta nova forma de sujeição permite a criação de sujeitos servis ao aparato maquínico seja dos negócios, das comunicações ou das finanças. A big data gerida pelas empresas-aplicativos para quais trabalham os entregadores – assim como outras gigantes do mercado, como Google e Facebook – ilustra perfeitamente a escalada da transformação dos indivíduos em dados, em inputs e outputs, em junções injunções de um processo. Aqui cabe apontar uma ponte sólida com as formulações de Shoshana Zuboff acerca da big data, para quem esta tecnologia representa um componente fundamental da nova lógica e acumulação, que procurar prever e modificar o comportamento humano como meio de produzir receitas e controle de mercado, fundada na indiferença formal entre aqueles que formam sua fonte de dados e aqueles que formam seus alvos finais (ZUBOFF, 2018, p. 18). O que Zuboff descreve como embaralhamento das fronteiras, promovido pela big data, entre o que constitui cliente, o que constitui usuário e o que constituí cidadão, nos termos de Lazzarato seria descrito como um indício do avanço da servidão maquínica que funciona com uma lógica diversa das identidades polares típicas da sujeição social.
Em posse destes conceitos, o desabafo sincero de Vítor sobre não se olhar no espelho adquire novos contornos. Parece uma maneira poética de acusar uma crise na produção de subjetividade ligada a sujeição social no neoliberalismo. O desemprego, o desespero, o desmonte de direitos joga um contingente maciço de pessoas em trabalhos muito insatisfatórios no que concerne a maneira como se percebem socialmente. São trabalhos que colocam os indivíduos em um patamar hierárquico com o qual não se identificam, não conseguem olhar no espelho e crer que no espaço que ocupam. E, no entanto, o neoliberalismo avança a largas braçadas na seara da servidão maquínica, fazendo com o que o trabalhador saiba produzir a ação e informação necessária para manter o processo de produção de riquezas funcionando. Uma interpretação brutal sobre o receio de se olhar no espelho é a de que tal gesto manifesta o sofrimento psíquico do indivíduo transformado em engrenagem bem azeitada de uma máquina que só aumenta e acelera.
Muito em consonância com Deleuze e Guattari, Lazzarato vê um lado positivo na servidão maquínica. A dessubjetivação e desterritorialização do indivíduo promovidas por este aparato de poder têm a capacidade de libertar os humanos da redução totalizante da sujeição social, isto é, superar a imposição de ler a experiência humana a partir de uma dualidade transcendente (LAZZARATO, 2014, p. 36). A servidão lida com imanência, com o real, com o concreto. Porém, no contexto neoliberal, esta produção de subjetividade só tem transformado os indivíduos em capital humano ou em engrenagens maquínicas. Trilhar a vereda que entre o molar e o molecular, que rompe com as hierarquias sociais produzidas pela sujeição social e que desterriotorializa o indivíduo sem torna-lo um dado em um processo de exploração é o caminho da política revolucionária para que nós, junto com Vítor, possamos voltar a nos olhar no espelho e nos reconhecermos como livres.
Lucas Beraldo de Oliveira é Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Membro de Grupo de Pesquisas TRAB21.
Bibliografia:
ABÌLIO, Ludmila Costhek. “Plataformas digitais e uberização: Globalização de um Sul administrado? ”. Contracampo: Brazilian Journal of Communication PPGCOM-UFF. Niterói, v. 39, n. 1, p. 12-26, abr./jul. 2020
LAZZARATO, Marizio. Signs and Machines: capitalism and the production of subjectivity. Los Angeles: Semiotext(e), 2014
SLEE, Tom Uberização: a nova onda do trabalho precarizado. São Paulo: Ed. Elefante, 2017.
ZUBOFF, Shoshana. “Big other: capitalismo de vigilância e perspectivas para uma civilização da informação”. In: BRUNO, Fernanda; CARDOSO, Bruno; KANASHIRO, Marta; GUILHON, Luciana et MELGAÇO, Lucas (orgs.). Tecnopolíticas da vigilância: perspectivas da margem. São Paulo: Boitempo, 2018
[1] Termo usado por Ludmila Abílio para se referir às empresas que gerem o trabalho com grande ênfase na utilização de aplicativos. Em: ABÌLIO, Ludmila Costhek. “Plataformas digitais e uberização: Globalização de um Sul administrado? ”. Contracampo: Brazilian Journal of Communication PPGCOM-UFF. Niterói, v. 39, n. 1, p. 12-26, abr./jul. 2020
[2] A Prefeitura do Rio de Janeiro, munícipio de Vítor, tem uma concessão para o aluguel de bicicletas públicas com a empresa TEMBICI e com patrocínio do banco privado Itaú. As bicicletas podem ser alugadas por qualquer um que pague uma mensalidade contratual.
[3] Gig-economy ou “economia do bico” é um termo cunhado para designar a atual tendência de precarização dos trabalhos, com cada vez menos estabilidade e continuidade. Trata-se da generalização de pessoas que cumprem tarefas pequenas, simples e diversificadas para conseguir seu sustento. Em: SLEE, Tom Uberização: a nova onda do trabalho precarizado. São Paulo: Ed. Elefante, 2017.
[4] A noção de multiplicidade utilizada por Lazzarato não se restringe a um campo específico da realidade. O significante é sempre algo transcendente, reduz e limita a complexidade do real. O indivíduo, por exemplo, possuí dentro de si um universo: órgão, bactérias, energias etc. Entende-lo como unidade é apenas uma construção social.
[5] Trata-se da música homônima Cidade de quem corre da banda Mente Matéria. É a terceira faixa do álbum Novo Ciclo, de 2018.