FILME “SLEEP DEALER”: O QUE A FALÁCIA DO FIM DO TRABALHO HUMANO OCULTA

Eneida Maria dos Santos*

Jackeline Cristina Gameleira Cerqueira da Silva**

(ATENÇÃO: CONTÉM MUITOS SPOILERS!)

Sleep Dealer (EUA/MEX, 2008) é um filme de ficção científica dirigido por Alex Rivera que retrata o uso da tecnologia como meio de produção e como ferramenta de gestão espacial, racial, quantitativa e qualitativa de mão de obra. O título do filme remete às horas de sono do protagonista negociadas em troca da execução de função precária e mal remunerada. O filme produzido em 2008 já antevia, entre outras coisas, o trabalho à distância por conexão eletrônica, a transformação da vida das pessoas em espetáculo na rede como forma de ganhar a vida e (por que não?) como uma profissão e a descentralização geográfica das atividades as quais podem ser comandadas, controladas e executadas à distância, seja as realizadas pelo proletariado, seja as desempenhadas pelo serviço militar.

O filme de Alex Rivera ganhou vários prêmios, como o do Festival de Cinema de Sundance e do Festival Internacional de Cinema de Berlim. O escritor e diretor norte-americano também participou da produção dos filmes Por Cybraceros?, The Hand That Feeds, The Inflitrators e The Sixth Section que possuem a mesma temática do imigrante mexicano e da divisão racial do trabalho latino na experiência norte-americana.

No filme, Memo Cruz, um hacker caseiro do interior do México, abandona seu lar e sua família na cidade de Santa Ana Del Rio em Oxaca, no México, após a morte do seu pai, que foi atingido em sua residência por um drone norte-americano comandado pelo piloto Rudy Ramirez e transmitido ao vivo em forma de “reality show”. O drone pretendia destruir a casa da família de Memo, que no caso estaria interferindo na comunicação dos veículos militares que protegiam a construção da represa Del Rio Water Inc. Memo muda-se então para a cidade de Tijuana à procura de trabalho com nódulos[1], os quais lhe permitiriam laborar à distância para empresas norte-americanas e mandar dinheiro para o sustento de sua família.

A caminho de Tijuana, Memo conhece Luz Martinez, que será sua parceira nesta nova etapa de vida, abrindo-lhe o caminho para obter as ferramentas necessárias para se trabalhar com nódulos, inclusive instalando tais instrumentos no seu corpo por ter aprendido a ser uma Coyotek[2] com seu ex-namorado. O que Memo não sabia é que, no decorrer da relação com Luz, que se autodeclarou escritora, na verdade compartilhava suas vivências, contatos e memórias com a empresa TrueNode que negociava seus dados a uma multidão de usuários consumidores.

Em uma destas experiências, Rudy Ramirez, o militar norte-americano que matou o pai de Memo por meio de drone controlado a partir dos Estados Unidos, interessou-se pelas histórias de Luz para chegar a Memo, querendo descobrir sua história de vida. No final do filme, Ramirez na forma de redenção, utiliza-se reversamente da mesma tecnologia, os drones, empregada para violência contra a população, a favor dos moradores da cidade de Santa Ana Del Rio, destruindo a represa Del Rio Water Inc. que trouxe seca e miséria à região onde a família de Memo morava.

Pretendemos analisar o filme a partir do debate sobre trabalho a partir dos dados (Lazzarato, 2019 e Han, 2018). Em seguida, nos propomos a analisar as tecnologias adotadas no filme em diálogo com as alterações da produção capitalista a partir da automação, da informalização do trabalho, bem como da expansão do trabalho fissurado (Amrute, Rosenblat e Callaci, 2020ª e 2020b; Benanav, 2019). Será feita ainda uma reflexão do filme quanto à divisão racial do trabalho a qual será abordada a partir dos ensinamentos de autores da Teoria Crítica Racial, como Richard Delgado e Jean Stefancic (2012), Cheryl I. Harris (1995) e Sareeta Amrute (2016). Por fim, o contexto social, político, econômico do filme e a atitude revolucionária dos personagens principais Luz, Memo e Rudy serão desenvolvidos a partir dos referenciais teóricos de Maurizzio Lazzarato (2019), integrado com o conceito de solidariedade social proposto pela ecologia e da necessidade de interação entre a atuação político, social e econômica nas dimensões individual, social e ambiental, a partir de Aaron Benanav (2018) e Guattari (1990).

Os smartphones, hoje, são os nódulos da vida real, quase tão integrantes do nosso corpo quanto as próteses do filme, que nos conectam ao mundo virtual e também possibilitam o trabalho e o lazer. No filme, a conexão é tão intensa quanto a que vivenciamos em nossos tempos, pois se os nódulos estão ligados diretamente ao cérebro dos personagens por cabos, nossos celulares estão conectados ao nosso subconsciente por meio dos rastros digitais que permitem que nossos padrões de comportamento sejam traçados (LAZZARATO, 2019, p.112; HAN, 2018, p. 23).

Luz Martinez expõe na rede todos os seus pensamentos à espera de remuneração futura, realizando um trabalho gratuito e sem garantia de contraprestação, tal como o trabalho majoritariamente gratuito que é realizado nas redes sociais. Esse tipo de autoexploração e imperatividade de transposição de aspectos da vida para a internet, típico das redes sociais, faz parte do dispositivo neoliberal da transparência, utilizado como forma de controle das individualidades, que possuem suas divergências suprimidas para permitir a circulação de dados de forma acelerada. Os dados que diferenciam as pessoas não conseguem circular tão rápido quanto os dados que as igualam (HAN, 2018 p. 19-20).

Luz decide expor a história de Memo após sofrer a ameaça de perder todos seus pertences e sua residência, em razão de dívida financeira pendente. A economia da dívida também é utilizada como forma de controle e de subjetivação dos indivíduos, os quais se submetem a trabalhos precários, em busca de assegurar sua subsistência (LAZZARATO, 2019, p.65).

Após ter nódulos instalados em seu corpo por Luz, Memo inicia o trabalho de construção civil por meio de um robô em obra realizada em San Diego, nos Estados Unidos. Imprescindíveis para a prestação dos serviços, os nódulos eram totalmente custeados pelos trabalhadores, que assumiam os riscos quanto a danos físicos e mentais, tal qual ocorre no trabalho em plataformas de transporte de pessoas e de mercadorias, como será adiante abordado. As instalações do galpão na cidade do México, que se assemelham na ideia a plataformas digitais, permitem que Memo e outros companheiros trabalhem conectados por cabos, usando lentes, visores e tubos de oxigênio, visualizando o espaço de trabalho e o passo a passo da atividade que está sendo executada em outro país por um robô, mas comandada na verdade por um ser humano na cidade de Tijuana. Na fala do supervisor de Memo, ali se realizava o sonho norte-americano de poder se apropriar do trabalho sem os trabalhadores.

Durante uma das cenas, ocorreu um acidente elétrico que levou à morte de um dos trabalhadores no ambiente laboral. Após o incidente, por determinação do supervisor, os demais profissionais voltaram às suas atividades, sem que a segurança dos equipamentos fosse verificada. Diversos trabalhadores mais velhos já se encontravam parcial ou totalmente cegos e o próprio Memo observou que quanto mais utilizava seus nódulos, menos enxergava. Ficaram evidentes a insalubridade e a periculosidade do trabalho realizado, sem que houvesse qualquer responsabilização da empresa contratada mexicana ou da contratante norte-americana quanto aos danos que os trabalhadores pudessem (e certamente iriam) sofrer.

Merece destaque também a cena do filme em que Memo adormece por 10 segundos, durante mais uma jornada de trabalho exaustiva que, em média, era desempenhada por 12 horas, tendo a máquina à qual ele estava conectado informado que aquele curto intervalo seria descontado da sua remuneração. De acordo com Jonathan Crary (2016, p. 13), os mercados globais há anos já atuam “em regime 24/7 – 24 horas por sete dias na semana”, todavia “agora é o homem que está sendo usado como cobaia para o perfeito funcionamento da engrenagem.” Segundo o autor, o “sono é a única barreira que resta, a única “condição natural” que subsiste e que o capitalismo não consegue eliminar (CRARY, 2016, p. 84).”  e no filme percebe-se que a tecnologia até isto pretende controlar.

O controle de robôs norte-americanos por trabalhadores precários no México pode parecer cinematográfico, mas possui correspondente semelhante em nossa realidade, como é o caso da Amazon Mecanical Turk – AMT, em que trabalhadores de diversas partes do mundo podem trabalhar e construir os sites das empresas do centro do capitalismo. O lema da AMT é a inteligência artificial que demonstra que a retórica predominantemente veiculada pela mídia de que os robôs vão substituir a mão de obra humana é uma falácia. Na verdade, estamos passando por um processo de substituição de empregos (estáveis e com boas condições de trabalho) por subempregos (instáveis e precários) (AMRUTE, ROSENBLAT e CALLACI, 2020a; BENANAV, 2019, p. 121-129). No Sul global, em um país como o Brasil, onde o trabalho informal sempre foi uma realidade, também vivemos um processo de acentuação da precarização (BENANAV, 2019, p. 124), com os seres humanos tornando-se trabalhadores apêndices das máquinas, e na maior parte das vezes invisibilizados por esse mesmo maquinário.

A multiplicação de subempregos é um desdobramento do processo de reestruturação produtiva iniciada a partir da crise do capitalismo da década de 70, em que as empresas buscaram se esquivar da responsabilidade sobre suas redes de produção e sobre os trabalhadores, por meio da adoção da terceirização, das redes de fornecimento just-in-time, da contratação de trabalhadores temporários e de trabalhadores autônomos. A popularização das plataformas digitais como meio de gerenciamento da mão de obra de uma multidão de indivíduos, partir da crise de 2008, também contribuiu para este processo (AMRUTE, ROSENBLAT e CALLACI, 2020a).

A assunção dos custos pelos trabalhadores sobre as ferramentas de trabalho e sobre os riscos à saúde também encontram paralelo no caso de empresas de software norte-americanas que transferiram algumas tarefas de suas operações para a Índia e Filipinas, por exemplo, tendo em vista a discrepância salarial entre os Estados Unidos e estes países (AMRUTE, ROSENBLAT E CALLACI, 2020b). O trabalho fissurado, segundo Daniel Weil e Tanya Goldman (2016, p. 27), significa a sua distribuição em pedaços para diversos subcontratados, indivíduos considerados autônomos, agências de trabalho temporário, franquia e outras empresas de modo a diminuir suas responsabilidades trabalhistas, fiscais e previdenciárias. O gerenciamento por meio dos algoritmos, por sua vez, permite a supervisão do trabalho de uma forma profunda, induzindo comportamentos do trabalhador, por exemplo (AMRUTE, ROSENBLAT e CALLACI, 2020b).

Outro exemplo dessa nova realidade são os trabalhos realizados por meio das plataformas de entrega de mercadorias e transporte de passageiros, em que os trabalhadores devem arcar com a aquisição e a manutenção de bicicletas, motos ou carros, assim como com as lesões físicas decorrentes de acidentes de trânsito. A realidade de trabalho que tem se popularizado com o trabalho em plataformas é difundida como um novo modo de empreendedorismo. Apesar do discurso, os trabalhadores não possuem autonomia real, uma vez que (i) não podem desenvolver suas atividades fora das plataformas, (ii)  não podem criar sua própria lista de clientes, (iii) não podem estabelecer o valor das suas tarifas, (iv) são gerenciados pelas plataformas por meio de incentivos e penalidades, (v) bem como estão submetidos a regras opacas. Nesse sentido, “não possuem o poder nem a informação necessária para tomarem decisões informadas”, mas são totalmente responsáveis pelo risco de sua atividade (AMRUTE, ROSENBLAT e CALLACI, 2020ª, tradução nossa).

Apesar dessas transformações no mundo do trabalho, a substituição total do trabalho humano pela tecnologia, tão rápida quanto se veicula na mídia, não se verifica na nossa realidade. Tal como no filme, o trabalho vivo, realizado por seres humanos, ainda é necessário para a produção capitalista. Sobretudo em um contexto de crise econômica, as empresas tendem a reduzir seus custos para diminuir os riscos de prejuízos financeiros, em vez de realizar os grandes investimentos que seriam necessários para possibilitar uma automação total. Durante a crise do Covid-19, a adoção de tecnologias para gerenciar e mediar a realização do trabalho intensificou-se. À primeira vista, tais transformações podem parecer temporárias. Entretanto, considerando que historicamente as empresas aproveitam os momentos de crise para reestruturar a produção, tais transformações provavelmente vão se perpetuar para além da crise atual (AMRUTE, ROSENBLAT e CALLACI, 2020b).

O filme também retrata a divisão racial do trabalho, sobretudo a existente nos Estados Unidos, ilustrada a partir do fenômeno em que uma empresa em San Diego contrata indivíduo em Tijuana para participar da construção de um prédio nos Estados Unidos, tal qual no programa denominado Bracero. No período da Segunda Guerra Mundial, o país norte-americano firmou acordo[3] com o México, a fim de formalizar a migração de mão de obra mexicana para trabalhar como trabalhador temporário em atividades pesadas, especialmente no campo do país estadunidense. Por esse programa, os trabalhadores mexicanos poderiam trabalhar, mas não poderiam residir nos Estados Unidos, muito menos obter a cidadania. Ou seja, só interessava a força de trabalho, não a pessoa humana.

Os bracero programs ocorreram em diversos momentos nos Estados Unidos, tendo o jornal The New York Times[4] relatado a sua existência de 1917 a 1922 e também durante o governo Reagan. O discurso norte-americano de caráter humanitário ao se criarem oportunidades de se fornecer vistos de residência aos mexicanos que tentam ultrapassar as fronteiras para começar uma nova vida nos Estados Unidos esconde, segundo o renomado jornal, os casos de intolerância e discriminação racial sofridas pelos campesinos mexicanos.

A Teoria Crítica Racial, movimento que estuda a relação entre raça, racismo e poder, busca esclarecer a questão étnica a partir da interação com a economia, história e política. Há inclusive intelectuais que se especializam nos estudos da teoria crítica latina a qual inclui análises quanto à nacionalidade e questões imigratórias (DELGADO; STEFANCIC, 2012, p. 3). Cheryl I. Harris (1995, p. 285), uma das intelectuais da Teoria Crítica Racial, esclarece que a branquitude foi protegida nos Estados Unidos porque conferia aos brancos a cidadania, bem valioso negado aos que não tivessem tal característica. Como pontua a autora, o Naturalization Act de 1790 limitou a cidadania a quem residisse há dois anos nos Estados Unidos, quem pudesse comprovar seu bom caráter e fosse branco. O exercício de direitos estaria relacionado a quem tivesse capacidade de exercê-los, havendo conexão entre direitos e identidade racial. A advogada então desenvolve o conceito de branquitude como propriedade, para esclarecer que o branco possui privilégios e se coloca na posição de quem pode excluir e subordinar os demais, postura esta desenvolvida no período escravocrata em que o escravo era considerado objeto e tratado como propriedade. Como o branco não era escravo, a sua identidade assegurava-lhe liberdade e ser proprietário (HARRIS, 1995, p. 278-280).

Programa similar ao Bracero Programs ocorreu no período pós Segunda Guerra Mundial na Alemanha por meio do Gastarbeiter Program[5] em que por meio de acordos com a Turquia, Iugoslávia, Itália, Portugal e Grécia, imigrantes obtiveram vistos temporários para trabalhar nas fábricas e na área de construção da Alemanha. De acordo com Amrute (2016, n.p.), o programa ganhou notoriedade pela ausência de fornecimento de meios para se ensinar a língua aos imigrantes, bem como oportunidades para que estes e seus familiares tornassem-se cidadãos, apesar da permissão para que vivessem no território alemão para laborar durante anos.

A ausência de integração dos imigrantes turcos à sociedade alemã deu-se, segundo o jornal alemão Deustche Welle[6], ao fato de que eles, no começo, não eram vistos como pessoas que tinham necessidades, mas apenas como trabalho. Segundo Amrute (2016, n.p.), apesar de cada nação e região possuírem suas particularidades, os atores sociais utilizam-se dos conceitos de raça, cultura, religião, nacionalidade e etnia como ferramentas na delimitação de espaços e reconstituição de fronteiras. O migrante, ao dispor do seu trabalho, de acordo com a autora, acaba se tornando uma commodity, facilitando o controle e a neutralização de qualquer ameaça por parte daquele que se aproveita da sua mão de obra (AMRUTE, 2016, n.p.).

Há também programa quase idêntico no Canadá, para trabalho no campo, em que trabalhadores vivem no exterior e só vão ao país do Norte no momento da colheita. Há casos de trabalhadores que laboraram por 37 anos no Canadá e não lhe é reconhecida a condição de canadense e considerado como “temporário”.[7]

A tecnologia é também abordada no filme em outras esferas da vida que além somente a laborativa. A realidade cinematográfica da empresa concessionária norte-americana da Califórnia que utilizava a alta tecnologia para controlar a distribuição da água e manter os “terroristas” longe de suas instalações ilustra como a máquina técnica, ou seja, dispositivos “impessoais”[8] como as tecnologias (câmeras, drones, reconhecimento facial, por exemplo), é utilizada em favor da máquina de guerra do capitalismo para a manutenção da relação de poder entre dominantes e dominados. Os discursos, ideologias e valores propagados pelas empresas transnacionais que monopolizam as informações e o Big data afetam a subjetividade dos indivíduos, dificultando a sua resistência. Imersos nesse contexto, assistem seus iguais, que buscam resistir à dominação, serem intitulados de inimigos e eliminados do sistema pela máquina de guerra do capital (LAZZARATO, 2019, p. 105, 109-114).

Com a sua subjetividade controlada, o irmão de Memo era fã do programa que exibia as ações de eliminação de terroristas. Em um dos episódios a que assistia, o drone controlado pelo piloto militar Rudy Ramirez, que se situava na Califórnia, Estados Unidos, atacou a casa de Memo, em virtude de uma acusação de terrorismo, matando seu pai. No programa, o homicídio foi ovacionado pela produção como um ato legítimo, mesmo que não tivesse ocorrido alguma acusação formal nem tivesse sido possibilitado o direito à ampla defesa. Em virtude da ausência de garantias legais fundamentais de um Estado de Direito, houve a imbricação com o Estado de Exceção, no qual a violência é o meio utilizado para evitar qualquer desvio contra as políticas neoliberais e a produção de valor, que, no caso em questão, era a água privatizada. O vilarejo vivia um estado de guerra permanente, em que a máquina de guerra do capital agia contra a população, negando-lhe acesso ao bem mais vital: a água (LAZZARATO, 2019, p. 66-70, 85). Vemos esse processo ocorrer no Brasil com o projeto de privatização da água.

Ao final da história, a aliança criada entre Rudy, Luz e Memo, com o objetivo de utilizar a tecnologia como meio de resistência, destruindo a barreira de água e possibilitando o acesso gratuito de todo o vilarejo de Santana Del Rio a um bem tão essencial que é a água, ilustra como a existência de laços sociais é imprescindível para a possibilidade de uma ação coletiva em prol de um mundo pós-escassez, ou seja, um mundo em que o lucro não é o principal orientador do desenvolvimento tecnológico e social, mas sim o bem-estar e a subsistência do ecossistema social, individual e do meio ambiente (BENANAV, 2019, p. 133-146, GUATTARI, 1990, 7-9).  O ato de resistência, imprevisto pelo sistema, também representa a Revolução contra a máquina de guerra do capital (LAZZARATO, 2019, p. 180-192).

O filme Sleep Dealer portanto, traz reflexões sobre como os avanços tecnológicos atingem a vida das pessoas, servindo de instrumento de controle e vigilância a favor de quem detém capital e poder, sendo aqueles “o “dispositivo” (a máquina)” que “é um escravo que serve para fazer outros escravos (os trabalhadores) (LAZZARATO, 2019, p. 154).” O diretor Alex Rivera, por meio de seus personagens, usa a ficção como denúncia das condições de trabalho a que estão submetidos migrantes mexicanos que representam outros assalariados que sofrem os efeitos da divisão racial do trabalho. Rivera, ao final do filme, demonstra, todavia, que é sempre possível a resistência dos que sofrem opressão, cabendo apenas se inverter a política de quem comanda a máquina técnica, já que “as máquinas sempre dependem de um elemento exterior, mesmo as máquinas automáticas (LAZZARATO, 2019, p. 151).”

* Mestre do PPGD/UFRJ, pesquisadora do TRAB21.

**Mestranda do PPDG/UFRJ, pesquisadora do TRAB21.

[1] Os nódulos eram próteses pelas quais era realizada a interface que permitiam às pessoas acessarem o sistema que mediava o acesso dos indivíduos da trama ao trabalho e ao lazer.

[2] Coyoteks são as pessoas que realizam o trabalho de instalação dos nódulos, que permitem às pessoas chegarem ao ciberespaço.

[3] Para maiores detalhes sobre o Bracero Program, consultar informações no site Bracero History Archive. Disponível em: < http://braceroarchive.org/about> Acesso em: 23 ago 2020.

[4] Disponível em: <https://www.nytimes.com/1981/10/05/opinion/bracero-program-no-3.html> Acesso em: 23 ago 2020.

[5] Relatos mais completos sobre a história do programa de imigração alemã e os efeitos na vida dos turcos que vivem na Alemanha podem ser encontrados no site da revista Der Spiegel. Disponível em: < https://www.spiegel.de/international/germany/turkish-immigration-to-germany-a-sorry-history-of-self-deception-and-wasted-opportunities-a-716067.html> Acesso em: 29 ago 2020.

[6] Disponível em: <https://www.dw.com/en/turks-in-germany-still-lack-a-sense-of-belonging/a-36199779> Acesso em: 29 ago 2020.

[7] Disponível em: <https://www.thestar.com/news/canada/migrants/2017/10/05/hes-worked-legally-in-canada-for-37-years-but-the-government-considers-him-temporary.html&gt; Acesso em: 09 set 2020.

[8] Utilizou-se o termo entre parênteses porque os dispositivos tecnológicos não são neutros e impessoais, uma vez que são desenhados com objetivos definidos, geralmente, por grandes empresas visando ao lucro (BENANAV, 2019, p. 139). Ademais, essas empresas também tendem a continuar gerenciando os dispositivos após a sua criação, buscando assegurar o seu objetivo inicial (lucro).

REFERÊNCIAS

AMRUTE, Sareeta. Encoding race, encoding class: Indian IT workers in Berlin. Durkham and London: Duke University Press, 2016. n.p.

AMRUTE, Sareeta, ROSENBLAT, Alex e CALLACI, Brian. Why Are Good Jobs Disappearing if Robots Aren’t Taking Them?: Post-Pandemic Automation Part I. 2020a. Disponível em: <https://points.datasociety.net/why-are-good-jobs-disappearing-if-robots-arent-taking-them-9f8d4845302a&gt;. Acesso em: 29 ago. 2020.

AMRUTE, Sareeta, ROSENBLAT, Alex e CALLACI, Brian. The Robots are Just Automated Management Tools: Post-Pandemic Automation Part II. 2020b. Disponível em: <https://points.datasociety.net/the-robots-are-just-automated-management-tools-b9bf28c4434&gt;. Acesso em: 29 ago. 2020.

BENANAV, Aaron. Automation and the future of work -2. New Left Review, II/ 120, (Nov Dec 2019, p. 117-146).

CRARY, Jonathan. 24/7: capitalismo tardio e os fins do sono. São Paulo: Ubu Editora, 2016.

DELGADO, Richard, STEFANCIC, Jean. Critical Race Theory: an introduction. New York and London: New York University Press, 2012.

GUATTARI, Felix. As três ecologias. Tradução: Maria Cristina F. Bittencourt. Campinas: Papirus, 1990.

HAN, Byung-Chul. Psicopolítica – O neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Belo Horizonte: Editora, Âyiné, 2018.

HARRIS, Cheryl I. Whiteness as Property. In: CREWSHAW, Kimberlé, GOTANDA, Neil, PELLER, Gary, THOMAS, Kendall. Critical Race Theory: The key writings that formed the movement. New York:The New Press, 1995, p. 276-291.

LAZZARATO, Maurizzio. Fascismo ou revolução? O neoliberalismo em chave estratégica. São Paulo: N-1 Edições, 2019.

WEIL, David, GOLDMAN, Tanya. Labor Standards, the Fissured Workplace, and the On-Demand Economy. Vol. 20, 2016 of Perspectives on Work, p. 26-29, 77.

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