RESENHA – Você não estava aqui (INGLATERRA, 2018) – Um diálogo entre Ken Loach e Gilles Deleuze – Lucas Beraldo e Jackeline Gameleira

Jackeline Gameleira (mestranda do PPGD/UFRJ e pós graduanda lato sensu em direito do trabalho e previdenciário da UERJ)

Lucas Beraldo (mestrando do PPGD/UFRJ)

ATENÇÃO: CONTÉM MUITOS SPOILERS

O cineasta inglês Ken Loach, aos 83 anos de idade, sempre e cada vez mais atual, há décadas denuncia em seus trabalho as consequências para a classe trabalhadora do desmonte do Estado do bem-estar social e do abandono de políticas redistributivas pela adoção do neoliberalismo nos dois lados do Atlântico, em filmes como “Pão e Rosas” (2000) e “Mundo Livre” (2007). Sua penúltima película, “Eu, Daniel Blake” (2016), ganhadora da Palma de Ouro no Festival de Cinema de Cannes, trata do desamparo e da burocracia kafkaniana que impede o trabalhador doente e necessitado de obter algum benefício previdenciário, assim como retrata o sacrifício diário de famílias pobres – especialmente monoparentais – para manter um estilo de vida digno para seus filhos.

Em seu mais recente filme, “Você não estava aqui” (2018), no original: “Sorry I missed you”, Loach debate as consequências da precarização das relações trabalhistas e a fuga do direito do trabalho por parte dos empregadores na produção atual. A história passa-se em Newcastle, na Inglaterra, e é protagonizada pelo casal Ricky e Abby, e juntam-se a eles o filho Sebastian (Seb), um adolescente, e a filha Liza Jane, uma criança. A família se encontra em uma crise financeira em razão de Ricky se encontrar desempregado. Como alternativa, inicia um trabalho uberizadopara uma empresa de logística que conta com “colaboradores” para fazer entregas, na forma de microempreendedores de si mesmos, que devem assumir o trabalho como se fossem uma empresa. 

Percebe-se que uma preocupação recorrente na produção cinematográfica de Loach é capturar a dinâmica atual do trabalho e seus efeitos sobre os indivíduos e instituições sociais. Neste intuito, o cineasta mostra-se muito atento em retratar como as formas contemporâneas de organização do trabalho afetam os trabalhadores, não apenas no cumprimento de suas tarefas profissionais, mas também em suas vidas privadas: suas relações familiares, de lazer, de amizade, de vizinhança e afins. Essa postura denota um esforço do diretor em não transformar o trabalhador em um indivíduo que existe apenas para o trabalho, mas retratá-lo como um sujeito que vive em sociedade, que sonha, que pensa, que cultiva valores morais próprios, enfim, um ser humano impossível de ser subsumido à maneira de produzir vigente.

            Para entender, afinal, o que é essa dinâmica nova do trabalho que afeta a vida das pessoas como um todo, é necessário um aparato teórico que também possa ultrapassar as ponderações exclusivas sobre as condições laborais e abarcar a vida cotidiana, as instituições e as tecnologias de forma ampla. Neste sentido, uma chave de leitura possível para pensar as transformações de que trata a obra cinematográfica de Loach é entendê-las como a transição de uma sociedade disciplinar para uma sociedade de controle, conforme nos traz Gilles Deleuze em seu visceral texto “Post-Scriptum sobre as sociedades de Controle”, [1] que será o referencial teórico central da presente resenha.

            A noção de sociedade de controle é apresentada por Deleuze como forma de dominação que emerge da crise aguda em que são lançados todos os projetos de confinamento que caracterizavam a sociedade disciplinar. O fim da 2ª Guerra mundial deixaria evidente, para o filósofo francês, que instituições basilares à sociedade disciplinar como a prisão, o hospital, a fábrica, a escola e a família estão condenadas em um prazo mais ou menos longo. No lugar desses sistemas fechados, a sociedade de controle instala suas próprias lógicas e tecnologias de dominação. 

            Por exemplo, a empresa – esta noção vaga, intangível – substitui, na sociedade do controle, a antiga fábrica. Enquanto a fábrica agrupava os indivíduos em um corpo único para vigiá-los, a preocupação central da empresa é instalar uma competição ininterrupta entre seus membros, opondo os indivíduos entre si. A formação permanente sob controle contínuo tende a suplantar a escola e seus exames pontuais. A instituição prisional, arquetípica da sociedade disciplinar passa, na lógica do controle, a implementar tornozeleiras eletrônicas e outras alternativas ao encarceramento, especialmente para pequenos delitos. Ganham nítida força, na atualidade, as formas ultrarrápidas de controle ao ar livre, de curto prazo e de rápida rotação, mas também contínuas e ilimitadas (Deleuze).

Eis o momento histórico crepuscular atual que Loach retrata em seus filmes, em que as antigas estruturas disciplinares ainda se sustentam e as novas instituições de controle ainda não se estabeleceram totalmente. Em “Você não estava aqui”, por exemplo, é central a tensão que emerge das novas exigências da lógica de trabalho dentro da sociedade de controle e as instituições centrais da sociedade disciplinar, como a família. O próprio título do filme é uma tradução que tenta manter o duplo sentido do nome no original, “Sorry, we missed you”. É a frase que consta no cartão da empresa de entregas, utilizada quando não há alguém para receber o pacote no endereço de postagem, mas que poderia estar sendo proferida também pela família de Ricky e Abby Turner, cujos filhos crescem sem ver seus pais, presos em suas jornadas de trabalho sem limite de horas, mal remunerados, sem cobertura a riscos da atividade laboral, enfim, precarizados ao extremo.

            De fato, o direito – como constata o próprio Deleuze – é uma instituição que encarna precisamente a natureza crepuscular da atualidade. Que as atividades profissionais como as de Ricky e Abby não sejam cobertas por direitos trabalhistas deriva de uma construção de zona cinzenta do trabalho e emprego[2] que possibilita tratar como prestadores de serviços autônomos trabalhadores que evidentemente têm características de uma relação de emprego. Os adultos em “Você não estava aqui” ilustram a realidade de um contingente de trabalhadores que não têm limite para jornada de trabalho, que não têm qualquer tipo de benefício previdenciário, nem uma boa remuneração, nem férias, nem intervalos, descanso semanal remunerado e ainda respondem pelos riscos da atividade pessoalmente, inclusive arcando com a aquisição e manutenção das ferramentas de trabalho exigidas pelo “patrão-colaborador”.

Essa dispersão do risco da atividade econômica tanto para consumidores, como para trabalhadores é, justamente, outra tendência da sociedade de controle. Se antes, na sociedade disciplinar, o padrão imperante era a concentração da propriedade nas mãos do capitalista para a produção eficiente, na sociedade de controle temos a dispersão como norma. O trabalhador vira proprietário do maquinário, mas não do negócio. Responde pelos custos de zelar pelos meios de produção, mas não consegue utilizá-los a contento sem a empresa logística, que controla a circulação e os contratos. A empresa de logística vira o ícone da produção na sociedade do controle, não mais a fábrica. Como as empresas não têm mais deveres trabalhistas, param de zelar por efeitos danosos ao trabalhador de tarefas extenuantes ou humilhantes exigidas na produção. Ao trabalhador é prometido trabalhar quando e quanto quiser, mas a empresa que controla sua remuneração exige jornadas que em muito ultrapassam os limites legais. 

Nesse contexto social, a utilização do marketing desponta como uma forma de controle importante para suavizar no âmbito do discurso e das ideias a transmissão do risco ao trabalhador. A liberdade é uma das ilusões difundidas por esta propaganda, prometendo apagar toda a submissão que acompanhava a figura do empregado. No filme, ela é evidenciada ao início, em que o supervisor expõe todas as vantagens do negócio, estimulando Ricky a aderir ao trabalho e enfatizando que ele seria seu próprio chefe. Nesse discurso, o trabalhador clássico, com as garantias legais, é visto com desdém.  

            É inegável que, diante das exigências do trabalho na sociedade de controle, não há como manter uma relação familiar nos moldes estabelecidos da sociedade disciplinar. Não que a família sempre tenha sido uma instituição de segurança e estabilidade, mas torna-se impossível vigiar os corpos, criar regras de convivência, desenvolver laços afetivos, não estando presente no espaço de confinamento disciplinar do lar. Por isso, a produção na sociedade de controle exige não só uma nova forma de trabalhar, mas também uma nova subjetividade: um novo indivíduo com uma nova moral, enfim, uma nova razão do mundo[3].  Um bom exemplo dessa nova subjetividade é dado por Byung-Chul Han, que afirma que no sistema neoliberal de desempenho, o sujeito culpa-se por não atender às expectativas depositadas nele – por mais infactíveis que sejam – ao invés de culpar as instituições injustas, o sistema ou as próprias metas[4].

            Nessa sociedade do controle, o marketing atribui ao indivíduo a responsabilidade pelo seu sucesso ou fracasso econômico, exige uma formação permanente, o cumprimento de metas e padrões impostos e alterados constantemente (Deleuze). Nesse contexto de culpabilização e de estímulos, há um embricamento de emoções, negativas e positivas. Essas emoções atuam no nível pré-reflexivo, anterior à consciência, sendo utilizadas pelo neoliberalismo para controlar os indivíduos (Han). 

As demandas produtivas, por óbvio, não geram por si só esse novo sujeito. Aqueles que precisam aderir aos termos do trabalho na sociedade do controle não sofrem uma lobotomia que os leva a esquecer os valores – emancipadores ou mesmo os valores internalizados da forma de dominação passada – de uma hora para outra. Além da já mencionada zona cinzenta jurídica, é importante um contexto social com alto índice de desemprego que gera um excedente de mão-de-obra para trabalhos pouco qualificados. Ricky, por exemplo, nunca havia trabalhado com entregas, mas com construção e reforma, antes de ficar desempregado.  

Outro mecanismo fundamental para a dominação na sociedade de controle é a dívida. Como afirma Deleuze, o homem não é mais o homem confinado, mas sim o homem endividado. Antes o trabalhador saía para o emprego em um espaço enclausurado como o da fábrica para garantir “o pão de amanhã”. Hoje trabalha supostamente livre, em espaço aberto, para quitar o seu passado. A dívida vira ferramenta de controle do indivíduo e o sujeito endividado não pode parar. Quando Ricky pede que Abby venda seu automóvel para pagar a entrada na van necessária ao seu novo emprego, mergulha a família na dinâmica da dívida que obriga todos a se comprometerem com um ritmo insano de trabalho para saírem do buraco da dívida. A dívida é pressuposto para a vaga no trabalho, e isso não é de forma alguma aleatório na sociedade de controle.

O trabalho de Abby torna-se ainda mais precário com a necessidade de se locomover por meio do transporte público, o que diminui seu tempo de vida familiar e seus intervalos para descanso. A realização do seu pagamento por visita, ou seja, por tarefa realizada, sem nenhum tipo de controle de jornada, mostra-se um dos principais fatores de precarização, como já previa Marx em O Capital. O trabalho a ser exercido por ela constantemente exige mais tempo do que formalmente previsto no contrato. A suposta liberdade em face do controle de jornada mostra-se perversa, pois é utilizada para acentuar a exploração da sua mão de obra. O trabalho por ela realizado é o de cuidado, e percebe-se que os responsáveis pela sua escala não estão preocupados com a qualidade do cuidado, e sim com as metas estipuladas, como demonstra a cena em que a trabalhadora tenta justificar seu atraso por situação causada por paciente idosa com Alzheimer. A dimensão do trabalho do cuidado, eminentemente feminino, não é deixado de fora do filme.

 Quanto a Ricky, vemos o quanto ele é cada vez mais enrolado na dívida, não só referente à aquisição do automóvel, quanto também em face da própria empresa para a qual trabalha, que exige o pagamento de diárias não cumpridas e do aparelho fornecido que foi danificado durante a prestação dos serviços. Dessa forma, pelo desenvolvimento da trama, as chances de escapar da armadilha não parecem ser muito favoráveis.

O aparelho da empresa é a clara representação da linguagem numérica como forma de controle dessa sociedade, que permite ou nega o acesso à informação (Deleuze). Todos os dias o protagonista possui uma quantidade de mercadorias a ser entregue em determinado tempo e determinada rota. O trabalho nunca acaba e a contraprestação depende da realização diária de todas as entregas. O exercício dessa forma de governo é modulável, altera-se a todo instante, conforme mostra Deleuze. Nada na sociedade de controle termina, analisa o referido filósofo.  

Apontando, por fim, para um horizonte mais otimista, Loach consegue explorar no filme um exemplo de uma nova forma de resistência que dobra a lógica da sociedade de controle contra si mesma. Seguindo à risca a ideia de liberdade e autonomia propalada pelo marketing da nova dinâmica profissional, Ricky leva sua filha para acompanhar suas tarefas na van, conversando e estreitando laços emocionais. Seu “patrão-colaborador”, ao tomar ciência do acontecimento, recrimina Ricky e diz que a empresa não permite isso. A resposta do entregador é simples e bela: “Pensei que eu fosse o dono do meu próprio negócio”. Verifica-se que, se estamos na sociedade de controle, a disciplina também é utilizada quando necessário à empresa e a resistência é afastada pelo uso do poder.

Com o decorrer da história, acompanhamos a transição entre um inicial estado de otimismo do protagonista – consequência da propaganda que foi realizada sobre a liberdade que ele teria como empreendedor para um estado de precariedade que se alastra pela sua vida e de Abby. Em alguns momentos em que o esgotamento toma conta de si, Ricky dorme ao volante, evidenciando como é perigoso colocar-se em total liberdade, sem garantias mínimas. Não é o negócio que fica em risco, mas sua própria vida. 

Fica evidente, nesse contexto, que ele possui apenas sua própria mão de obra para vender e um carro financiado. Ricky não possui capital reservado para investir no “negócio” e depende totalmente da organização da empresa de logística. Ele existe como entregador apenas por meio da intermediação de toda a estrutura da empresa para a qual trabalha. A ideia de ser empreendedor individual nesse cenário é insustentável e uma falácia.

O final do filme parece desalentador. No entanto, ele pode nos indicar a insustentabilidade desse conjunto de coisas que poderíamos chamar de neoliberalismo, que é um quadro maior da sociedade de controle. Em tempos de pandemia do Coronavírus de 2020 conseguimos perceber isso claramente, pelo esfacelamento das instituições econômicas e pelo retorno forte do confinamento e da disciplina sobre os corpos aludidos por Foucault. Também se percebe de forma mais nítida o duplo caminho que tomam os trabalhadores uberizados empreendedores de si mesmos: sucumbir à tragédia financeira ou sair para trabalhar, como o protagonista de “Você não estava aqui”, arriscando perder sua própria vida. Esperamos que após a tragédia que estamos passando haja a construção de uma nova normalidade, e não o retorno a essa perversa tão bem desenhada por Ken Loach.


[1] DELEUZE, Giles. “Post-scriptum sobre as sociedades de controle”. Conversações: 1972-1990. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992, p. 219-226

[2] AZAÏS, Christian. DIEUAIDE, Patrick, KESSELMAN, Donna. (2017) Zone grise d’emploi, pouvoir de l’employeur et espace public : une illustration à partir du cas Uber, Industrial Relations / Relations Industrielles, 72 (2), pp. 433-456. https://doi.org/10.7202/1041092ar

[3] DARDOT, Pierre. LAVAL, Christian. A nova razão do mundo. Ensaio sobre a sociedade Liberal. São Paulo: Boitempo, 2016.

[4] HAN, Byung-Chul. Psicopolítica. O neoliberalismo e as novas técnicas de poder. Belo Horizonte: Ayiné, 2018.

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